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Uma epidemia global

Publicado em 23/11/2015 • Notícias • Português

Se os números contam alguma coisa, a humanidade está perdendo a guerra contra o câncer. Segundo os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), 14 milhões de pessoas foram diagnosticadas com a doença no ano passado, e 8,2 milhões morreram. Esse número está aumentando. O envelhecimento da população e a adoção de hábitos de risco, como fumar, dieta inadequada, falta de exercícios físicos e exposição a poluentes contribuem para as previsões de aumento de quase 40% de casos até 2030, quando serão diagnosticadas cerca de 22 milhões de pessoas com câncer e 13 milhões morrerão da doença. O Brasil não fica atrás. Aqui, o número de doentes vai aumentar 38% ao longo da próxima década, passando de 366 mil novos casos em 2009, para 576 mil em 2020.

O maior impacto da doença será registrado nos países com menores recursos, muitos dos quais mal equipados para enfrentar essa expansão no número de casos. Pesquisa sobre a situação do câncer na América Latina, apresentada neste mês no Fórum Latino-Americano de Oncologia, alerta que o continente corre o risco de enfrentar um aumento substancial no número de vítimas se não houver melhoria no diagnóstico precoce da doença e no acesso a tratamentos pelas populações mais pobres. Nesse período, as taxas de mortalidade dos principais tipos de câncer – pulmão, próstata, mama, estômago, cólon e reto e colo do útero – se manterão estáveis ou vão aumentar na maioria dos casos.

Números como esses despertam sentimento de insatisfação. Mas não contam toda a história. Pelo menos do ponto de vista da viabilidade científica, vislumbra-se um cenário mais próspero, capaz de frear o avanço dos números. Em Foz do Iguaçu, onde ocorreu o 19º Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, paralelo ao Fórum Latino-Americano, oncologistas brasileiros e estrangeiros comemoravam os recentes avanços no tratamento contra a doença. Como observou Gustavo Fernandes, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), “estamos vivendo um momento importante na pesquisa do câncer. Embora seja apenas uma promessa, essa nova abordagem começa a revelar seu potencial terapêutico”.

A promessa que tanto entusiasmou as centenas de médicos no congresso chama-se imunoterapia, tratamento que age no sistema imunológico para atacar os tumores mais agressivos como o melanoma ou o câncer de pulmão, quando outros tratamentos fracassaram. A técnica, em desenvolvimento há décadas, apresentou resultados promissores, por isso foi considerada o avanço científico mais significativo de 2013, segundo a revista “Science”. Neste ano, a abordagem mereceu aplausos dos participantes do encontro da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco) em Chicago, mesmo sendo necessário manter a prudência em virtude do baixo número de pacientes em observação e das muitas perguntas ainda sem respostas sobre quem pode se beneficiar do tratamento.

Hoje se sabe que câncer é uma palavra genérica que designa um sem número de doenças diferentes, com causas, sintomas clínicos, formas de disseminação peculiares e diversos graus de agressividade. Essas doenças têm em comum o fato de serem causadas por uma alteração do DNA de alguns genes cuja função é controlar o desenvolvimento, a reprodução e a organização das células. A multiplicação dessas células com erros genéticos é um dos processos que originam os diversos tipos de tumor e podem se espalhar pelo corpo (metástase). Em alguns casos, essa alteração está relacionada a diferentes fatores que podem ser agentes biológicos naturais, como os raios ultravioleta do sol; ou alguns vírus específicos como o HPV; e agentes químicos, caso do fumo. Cerca de 15% dos tumores são relacionados à genética e podem passar de uma geração a outra.

A incidência de câncer cresce por várias razões, algumas, paradoxalmente, boas. “O maior fator de risco para câncer é a idade”, afirma Fernandes. É que a doença está relacionada ao envelhecimento da população e o combate às infecções que fazem com que as pessoas vivam mais tempo. Outros fatores são o estilo de vida moderno. Para se ter uma ideia, o tabagismo provoca mutações nas células da boca, garganta, bexiga, pulmão e estômago e responde por cerca de 20% das mortes por diversos tipos de câncer. Além disso, alguns tipos de tumor têm relação com agentes infecciosos como o HIV, o vírus da hepatite B (fígado), e o papilomavírus humano (HPV) contra o câncer do colo do útero. “Implantar campanhas educativas, de diagnóstico precoce e vacinação são medidas de impacto relevantes para evitar a doença”, diz Fernandes.

Ações de conscientização e atendimento de qualidade em hospitais públicos e privados também são fundamentais. Segundo a pesquisa sobre a situação do câncer na América Latina, que foi publicada na revista “Lancet Oncology”, embora a incidência geral de câncer seja mais baixa no continente (163 por 100 mil habitantes) do que na Europa (264 por 100 mil) ou nos EUA (300 por 100 mil), a mortalidade é maior. Isso ocorre principalmente pela apresentação da doença em estágios mais avançados e está em parte relacionado ao acesso mais difícil ao tratamento do câncer. “Nos EUA, 60% dos casos de câncer de mama são diagnosticados nos estágios iniciais da doença, o que ocorre com apenas 20% dos casos no Brasil”, exemplifica o oncologista Carlos Barrios, coordenador do Fórum.

Essa é uma dificuldade e tanto que torna o tratamento difícil, doloroso e sobretudo caro. O custo total do câncer nos países da América Latina é atualmente de mais de US$ 3 bilhões por ano, e isso deve crescer fortemente, segundo o estudo apresentado no Fórum Latino-Americano de Oncologia. “Se não colocarmos essa questão do custo na pauta agora, não estaremos preparados para lidar com o problema em 10 a 15 anos”, diz Barrios. Segundo o oncologista Paul Goss, da Harvard Medical School, coordenador do estudo, 6% da população mundial consome 84% dos dólares gastos com o controle do câncer. “Se conseguirmos dar a todos os pacientes o tratamento tradicional [cirurgia, radioterapia, prevenção e cuidados paliativos], mais vidas serão salvas. A prioridade é atendimento básico para todos os pacientes.”

No Brasil, o número de doentes vai aumentar 38% ao longo da próxima década, passando de 366 mil novos casos em 2009, para 576 mil em 2020

Não menos importante é o sofrimento emocional associado a esse mal que o conhecimento recente não conseguiu extirpar. Ao longo da história, o câncer foi visto como doença incurável, sinônimo de dor e morte, além de exclusão social. Tanto que muita gente se recusava a pronunciar a palavra, preferindo se referir “àquela doença ruim”. Não é mais assim, mas a honestidade exige que se diga que o tratamento ainda pode ser assustador, desagradável e o caminho para a cura ou atenuação da doença às vezes é longo e difícil. “Não é surpresa que o diagnóstico desperte medo exagerado”, diz o oncologista inglês Mel Greaves, autor do livro “Cancer: the Evolucionary Legacy” (Oxford Press). Como ele se refere: “O câncer moldou a sua própria mitologia de predador obsceno e demoníaco”.

A boa notícia é que hoje se sabe mais sobre a biologia que fundamenta o câncer e se tem boa ideia dos múltiplos fatores que envolvem o seu desenvolvimento. Muitas pessoas, cujos tumores não se espalharam, vivem bem. Houve avanços significativos no tratamento de tumores pediátricos, de adolescentes, linfomas de Hodgkins, leucemias e algumas formas raras de neoplasias. Em algumas dessas condições, a taxa de cura – entendida como sobrevida de pelo menos cinco anos sem o retorno do tumor – supera os 90%. Além disso, em alguns casos, como o câncer de mama precoce, medicamentos introduzidos há mais de dez anos trouxeram um prognóstico melhor. “Sob essa perspectiva, estamos ganhando a guerra contra o câncer”, diz Barrios. “A sobrevida nos EUA de todos os pacientes aumentou entre 18 e 20%, mais em uns casos e menos em outros. Quando isso não acontece, a causa está vinculada à dificuldade de acesso aos métodos de detecção e de tratamento.”

Até o anúncio da entrada da imunoterapia no arsenal de combate aos tumores, no entanto, não havia novidade de peso no que se refere ao tratamento. Mesmo com todo o investimento em pesquisa por parte do governo americano, fundações privadas e empresas farmacêuticas, a base continuava a mesma – o uso combinado ou não de cirurgia, radioterapia, quimioterapia e hormonioterapia. No primeiro caso, busca-se extirpar as células do tumor do organismo, enquanto os outros procedimentos tentam matá-las. Não se pode esquecer, porém, que mesmo essas abordagens foram sendo aprimoradas ao longo do tempo, a fim de serem mais efetivas e menos agressivas. “Os pacientes ainda vivem situação frágil, embora não sofram tanto. Estão em melhores condições e têm mais chances de cura também”, afirma Fernandes.

A quimioterapia tradicional combate todas as células do corpo que apresentam grande capacidade de divisão, característica das células tumorais e também das saudáveis, como as do cabelo e do trato digestivo. O seu uso permite barrar o crescimento do tumor, mas também pode provocar efeitos colaterais, como náusea, fadiga e enfraquecimento do sistema imunológico, além da perda do cabelo. A evolução do conhecimento e o investimento em pesquisas clínicas levaram ao aumento do número de medicamentos desenvolvidos de acordo com esse princípio e a novos mecanismos de ação, com melhores resultados e tolerância pelo organismo.

DivulgaçãoFernandes: “Estamos vivendo um momento importante na pesquisa do câncer. Embora seja apenas uma promessa, essa abordagem começa a revelar seu potencial terapêutico”
Hoje, mais de 90% dos medicamentos oncológicos em desenvolvimento pela indústria farmacêutica têm nova abordagem. São chamados de remédios inteligentes porque atacam apenas as células que sofrem alterações, preservando as saudáveis e portanto diminuindo os efeitos colaterais. A terapia dirigida a alvos específicos nas células, identificados em testes moleculares e genéticos, trouxe mais esperança e qualidade de vida aos pacientes. Muitas dessas drogas atuam sobre proteínas envolvidas na sinalização celular que levam à multiplicação do tumor. Outras vezes os alvos podem ser os responsáveis pela proliferação dos vasos sanguíneos necessários para a irrigação do tumor e de suas ramificações.

Medicamentos inteligentes também podem induzir a morte das células, liberando quimioterapia no alvo, a exemplo do que ocorre em alguns tipos de câncer de mama. No entanto, em muitos tipos de tumor existem várias vias de sinalização e o bloqueio de apenas uma delas não consegue paralisar por completo a multiplicação do tumor. Em outros casos, o câncer se torna resistente aos medicamentos ou mesmo provoca efeitos colaterais. O jeito então é apelar para uma combinação de terapias-alvo com cirurgia, quimioterapia ou radioterapia convencional.

“Se combinarmos as opções de cirurgia, radioterapia, quimioterapia, hormonioterapia e terapias-alvo hoje disponíveis somente para o câncer de mama, por exemplo, teremos mais de 400 esquemas possíveis”, comenta o oncologista Antônio Buzaid, que acaba de lançar, em colaboração com o colega Fernando Maluf, o livro “Vencer o Câncer de Mama” (Editora Dendrix).

Buzaid, chefe-geral do Centro de Oncologia do Hospital São José, ligado à Beneficência Portuguesa, é entusiasta da imunoterapia, que acompanha desde a década de 1980, quando se conhecia apenas a interleucina ou o interferon como alternativas. “A taxa de resposta era baixa e apenas uma porcentagem pequena de pacientes se beneficiava do tratamento, mas quando isso acontecia durava bastante tempo”, afirma. Outro exemplo também utilizado é a infusão de BCG, conhecida como vacina contra tuberculose, na bexiga para contenção do tumor superficial, evitando a cirurgia. O BCG provoca uma inflamação no órgão, que atrai as células de defesa responsáveis por combater proteínas anormais.

Recentemente, os médicos passaram a usar os novos medicamentos imunoterápicos mais eficientes em pacientes com estágio avançado de tumores, como melanoma metástico. “Temos 300 pacientes com uma das estratégias de tratamento e cerca de 80 com outra mais nova em protocolo clínico”, diz Buzaid. Na tentativa de familiarizar os doentes com essa nova forma de abordar o câncer, o oncologista apresentou os avanços na área em palestra reproduzida no site do Instituto Vencer o Câncer (vencerocancer.com.br).

Na palestra, mostra que células cancerosas, apesar de possuírem alterações, têm semelhanças com as saudáveis e isso faz com que o sistema imunológico não as reconheça como ameaça, como faz, por exemplo, com agentes infecciosos. Nos anos 90, pesquisadores identificaram a existência de proteínas na superfície dos linfócitos T, cujo papel é regular a atividade das outras células de defesa. Esses receptores, os mais conhecidos são o PD-1 e o CTLA-4, funcionam como barreiras que evitam o ataque às células normais do corpo, mas costumam ser enganados pelas células cancerosas. O resultado é que o tumor cresce sem ser reconhecido como uma ameaça.

A compreensão sobre esses mecanismos resultou em uma droga de nome difícil, ipilimumab, já usada contra o melanoma avançado, aprovada inclusive no Brasil, e promissora contra outros tipos de tumor avançado como de pulmão e rins. Trata-se de um tipo de anticorpo monoclonal que se liga ao CRLA-4 e desativa esse regulador, de modo que as células de defesa passam a enxergar o tumor como inimigo, e utilizam seus recursos para atacá-lo. No caso do melanoma, tipo de tumor com alta possibilidade de metástase e taxa de mortalidade elevada, significou novo alento.

Outros medicamentos, como o nivolumab e o pembrolizumab, ainda não aprovados no Brasil e disponíveis apenas em protocolos clínicos, conseguem driblar os truques das células cancerosas alertando sobre o perigo e orientando para a sua destruição ao inibir o PD-1. Uma das pessoas que se valeu do tratamento é o ex-presidente dos EUA Jimmy Carter, diagnosticado com melanoma no cérebro. “Há alguns anos, não existiam muitas opções para o problema do ex-presidente Carter”, disse em comunicado Louise Perkins, diretora-científica do Melanoma Research Alliance, dos EUA. “Essas drogas imunoterápicas, isoladas ou em combinação com outros tratamentos, parecem ser o futuro da terapia do câncer.”

Embora também entusiasmado com os resultados das novas drogas, o oncologista Paulo Hoff, diretor-geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e diretor de oncologia do Hospital Sírio Libanês, lembra que os resultados são apenas o começo de muitas pesquisas. “Os primeiros resultados impressionam, mas ainda existem obstáculos para que esse tipo de terapia alcance todo o seu potencial”, afirma. “Entre outras coisas, precisamos identificar quais os pacientes que podem ser beneficiados e os fatores que predizem as respostas. Novas estratégias também precisam ser desenvolvidas para que outros tipos de tumor possam ser combatidos.”

Outro problema, alerta Hoff, é o custo desses medicamentos. Ele foi um dos 118 médicos líderes na área que assinaram uma petição, durante o Congresso Americano de Oncologia, chamando atenção para o alto custo dos medicamentos oncológicos (mesmo nos EUA) e pedindo mais atenção para ações de prevenção e detecção precoce dos tumores. “Quando se considera que o câncer vai afetar um em cada três indivíduos no mundo, dá para perceber que a situação não é sustentável”, diz o documento. Na verdade, se todas as drogas derivadas da biotecnologia elevam nas alturas o custo do tratamento, essas desenvolvidas para o sistema imune tornam a conta impagável mesmo para os países ricos. Para se ter uma ideia, o tratamento completo com ipilimumab, com quatro aplicações, no Brasil tem um custo de R$ 360 mil.

Para o oncologista do AC Camargo Cancer Center Milton José de Barros e Silva está na hora de o Brasil fazer como outros países e discutir como é possível incorporar as novas tecnologias no sistema de saúde. “A discussão não pode se restringir apenas às empresas farmacêuticas e aos órgãos governamentais, mas deve envolver as sociedades médicas e associações de pacientes”, afirma. “Esta é uma discussão técnica, em que se avalia não apenas o preço do medicamento, mas algo mais complexo, que é o valor em termos de qualidade de vida, tempo de controle da doença, hospitalização e efeitos colaterais.”

Outra discussão urgente, segundo o médico, refere-se ao aprimoramento do sistema regulatório de pesquisa para que mais pacientes possam participar de estudos clínicos e para estimular a indústria farmacêutica nacional a entrar nessa batalha contra o câncer. Hoje, devido a entraves burocráticos, o Brasil participa de cerca de 2% dos testes clínicos dos mais de 150 mil projetos cadastrados no site www.clinicaltrials.gov, banco de dados do governo americano. Nos últimos 15 anos, das mais de 48 mil pesquisas na área de oncologia, o Brasil participou apenas de 841. Poderia ter participado de muito mais, se a aprovação dos protocolos não demorasse tanto – 10 a 14 meses, enquanto nos Estados Unidos e em países da Comunidade Europeia, o tempo médio de aprovação é de três meses.

“Se essas questões não forem avaliadas adequadamente, perderemos o controle sobre o que é melhor para os pacientes”, diz Barros e Silva, referindo-se à judicialização da medicina, ou seja, as demandas contra o SUS e os planos de saúde que pleiteiam o pagamento de medicamentos de alto custo não cobertos pelos planos ou não disponíveis na rede pública. “Teremos pacientes sem opção e outros correndo atrás de processos para conseguir o tratamento ideal”, diz o oncologista. Barros e Silva cita a polêmica despertada pela fosfoetanolamina, distribuída pela USP de São Carlos, como resultado de decisões judiciais, apesar de seu uso não ter passado pelos testes em humanos necessários para se saber se é mesmo eficaz. “Toda essa discussão trouxe pelo menos uma coisa de bom, que é alertar a sociedade para a importância das pesquisas clínicas no desenvolvimento de novos tratamentos”, afirmou. 

Fonte: Valor Econômico

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