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Dos supermercados aos hospitais, as muitas faces do colapso na Venezuela

Publicado em 16/02/2016 • Notícias • Português

Num hospital de San Cristóbal, no extremo oeste da Venezuela, a crise econômica teve uma consequência nefasta há duas semana: seis bebês morreram porque não havia remédios nem respiradores suficientes.

Na capital, Caracas, a crise transformou a vida normal numa provação para quase todo mundo. Apagões frequentes levaram o governo a iniciar um racionamento de energia, deixando os shoppings no escuro. Casas e apartamentos enfrentam falta d’água regularmente.

Rosalba Castellano, de 74 anos, passou horas esta semana no que se tornou uma rotina exasperante para milhões: esperar em longas filas para comprar qualquer tipo de comida disponível. Ela voltou para casa com só dois litros de óleo de cozinha.

“Esperava comprar papel higiênico, arroz, macarrão”, disse ela. “Mas você não encontra nada.” Sua única opção é procurar pelos produtos a preços elevados no mercado negro. O governo, disse ela, “está nos fazendo passar por um sofrimento selvagem”.

A Assembleia Nacional, agora controlada pela oposição, declarou emergência alimentar na quinta-feira passada – uma tentativa de pressionar o governo do presidente Nicolás Maduro a, entre outras coisas, relaxar controles de preços que geraram uma escassez generalizada de produtos, dos remédios à carne.

“As pessoas foram deixadas sem a capacidade de se alimentarem sozinhas”, diz o parlamentar Omar Barboza.

A inflação no país deve atingir 700% neste ano, a mais alta do mundo, segundo o Fundo Monetário Internacional. A economia encolheu 10% no ano passado e deve se contrair outros 8% neste ano, o pior desempenho mundial, também segundo o FMI.

Economistas dizem que o governo de Maduro precisa reverter o curso de uma década de políticas econômicas que transformaram drasticamente a economia. O Estado assumiu o comando de centenas de empresas, instituiu controles de preços e gastou somas enormes de dinheiro público, o que fez o déficit do orçamento saltar para cerca de 20% do PIB.

Apesar do agravamento da crise, há poucos sinais de mudança num governo que atribui os problemas a uma “guerra econômica” travada por supostos inimigos do país, como empresas privadas e o governo americano. Solicitações de comentários feitas a vários ministérios e agências do governo não foram respondidas.

Na quinta-feira, legisladores que apoiam o governo disseram que a escassez de alimentos é causada por empresas privadas que estocam alimentos para tentar desestabilizar o governo. Mais tarde, no mesmo dia, o Supremo Tribunal do país deu poderes especiais ao presidente para que ele tenha controle direto sobre o orçamento e mais liberdade para intervir nas empresas privadas. Parlamentares de oposição disseram que as duas medidas têm o objetivo de impedir que eles tentem limitar a intervenção do governo na economia.

Em resposta à crescente escassez de alimentos, Maduro criou o Ministério da Agricultura Urbana, em janeiro. Ele ressaltou que cria 50 galinhas em sua própria casa e que pode-se também ensinar os cidadãos a plantar e criar animais por conta própria.

Com as dificuldades diárias crescendo, uma em cada dez pessoas está tentando sair do país, segundo a empresa de pesquisas Datanalisis. Mais de um milhão de venezuelanos já emigraram nos últimos dez anos, segundo várias estimativas.

Leonardo Briceno diz que três dos quatro gerentes de sua firma de relações públicas em Caracas se demitiram para deixar o país. Na próxima semana, ele próprio vai viajar para os EUA com a esposa e a filha de dois anos. “Isso vai além do crime e da deterioração econômica”, diz. “Imagino um cenário onde minha filha precise de um remédio e nós não conseguimos achá-lo. Isso é o que mais me assusta.”

A queda no preço do petróleo atingiu mais a Venezuela que qualquer outro país produtor. O petróleo representa 96% da receita com exportação e financia aproximadamente metade do orçamento federal.

Durante anos, o orçamento se baseou num preço do petróleo de US$ 40 por barril, mesmo em anos quando o preço real era cerca de US$ 100. O dinheiro excedente foi colocado num fundo fora do orçamento e da supervisão do Congresso. Esse dinheiro foi gasto e estima-se que grandes somas foram roubadas, segundo ex-autoridades do governo venezuelano e investigadores dos EUA. O fundo venezuelano para tempos difíceis tem hoje US$ 3 milhões, enquanto outros países ricos em petróleo possuem fundos que totalizam centenas de bilhões de dólares.

A Venezuela não apenas não economizou como também tomou empréstimos significativos. Sua dívida externa está hoje em torno de US$ 110 bilhões.

Alejandro Arreaza, economista para a América Latina do banco Barclays, diz que dados de mercado indicam que a Venezuela tem 85% de chances de entrar em moratória nos próximos 12 meses. Ele diz acreditar que o governo irá pagar US$ 1,5 bilhão que vencem em 26 de fevereiro e fará tudo para honrar pagamentos de US$ 5 bilhões em principal e juros em outubro e novembro. Para evitar uma moratória problemática e a apreensão de ativos de petróleo por credores, diz ele, a Venezuela pode ter que cortar ainda mais as importações e talvez tomar medidas para reestruturar sua dívida. “Eles já têm problemas políticos internos”, diz Arreaza, “e querem evitar abrir um fronte internacional”.

A falta de dólares causada por controles de câmbio e a queda na receita com o petróleo golpeou duramente a economia. Estatizações generalizadas e controles de preço debilitaram o setor privado, tornando o país mais dependente de importações.

A Venezuela costumava exportar arroz, café e carne. Hoje, o país importa os três. E importa até suas próprias cédulas de dinheiro, encomendadas a empresas europeias e transportadas em aviões 747.

O número de empresas privadas no país caiu 20% entre 2006 e 2014, segundo a Datanalisis. Multinacionais como a Clorox Co. simplesmente saíram do país. Outras, como a Ford Motor Co. e a Mondelez, fabricante dos biscoitos Oreo, realizaram baixa contábil no valor de seus negócios locais para zero.

A crise se faz sentir especialmente no sistema de saúde, outrora a vitrine desse país socialista. Associações médicas e especialistas do setor dizem que os casos de mortes que poderiam ser evitadas estão aumentando devido à falta de remédios, equipamentos e médicos. A maior associação de farmácias do país afirma que 90% dos medicamentos estão escassos.

A morte dos bebês no hospital de San Cristóbal foi causada por falta de remédios e de respiradores para pulmões não totalmente desenvolvidos, segundo autoridades do serviço de proteção à criança da cidade e o sindicato que representa os funcionários do hospital. “Até que o problema da falta de suprimentos e importados seja resolvido, a situação dos recém-nascidos aqui só vai piorar”, diz Karelis Abunassar, a chefe do serviço de proteção.

Fonte: Valor Econômico

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