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A tecnologia digital pode transformar todos nós em médicos?

Publicado em 16/01/2019 • Notícias • Português

A necessidade é normalmente considerada a mãe de todas as invenções. Para o americano Jonathan Rothberg, foi a frustração de ficar sentado por horas em salas de espera de hospitais.

A filha dele sofre de esclerose tuberosa, uma doença que provoca o surgimento de cistos nos rins. Por causa disso, ela precisa fazer exames de ultrassonografia com bastante regularidade, o que envolve várias idas e vindas ao hospital.

Rothberg estava convencido de que algo precisava ser feito.

Ele já tinha em seu currículo um histórico de inovação: havia criado o primeiro sequenciamento de alta velocidade do DNA usando tecnologia digital, o que permitiu a muito mais pessoas ter acesso a seus próprios códigos genéticos.

Dessa vez, Rothberg tinha certeza de que a tecnologia poderia oferecer uma maneira mais barata e mais fácil de realizar exames de ultrassonografia.

Poucos anos depois, ele criou o Butterfly QI. O dispositivo cabe no bolso e pode ser conectado a um iPhone. Montado sobre o chip de um computador, o Butterfly QI usa milhares de minúsculos sensores, cada um mais fino do que um fio de cabelo humano. Da mesma forma que um morcego usa o som para localizar objetos, os minúsculos sensores do aparelho permitem ao usuário obter um raio X do seu corpo: do tamanho do fígado ao possível aparecimento de tumores.

Rothberg diz que seu objetivo é “democratizar” a saúde, ao disponibilizar um scanner a baixo custo (US$ 2 mil ou R$ 7,5 mil) que oferece a pessoas comuns a oportunidade de fazer seu próprio diagnóstico.

“Não queríamos apenas capacitar os profissionais de saúde”, diz ele.

“Nosso objetivo era que qualquer pessoa, em qualquer lugar, pudesse olhar para dentro do corpo humano”, acrescenta.

Se os termômetros surgiram como dispositivos médicos especializados e se tornaram tão populares, a ponto de estarem em todas as casas, argumenta Rothberg, por que o mesmo não poderia ser feito com o ultrassom? Da mesma forma que os computadores gigantes foram substituídos pelos smartphones, inovações como essa prometem transformar a saúde, ampliando o acesso à população de serviços que antes eram exclusivos de hospitais e especialistas.

Para os defensores da revolução digital, estamos preparados para aproveitar o poder dos dados armazenados eletronicamente e os benefícios dos dispositivos que podem monitorar a saúde de cada indivíduo, a cada momento de cada dia.

Apesar disso, os desafios são inúmeros.

Embora exista um amplo otimismo de que a tecnologia aumentará a eficiência dos serviços de saúde, críticos advertem que muitas dessas inovações ainda estão no campo da “ficção científica”, ou seja, parecem revolucionárias, mas, na prática, não têm resultados cientificamente comprovados.

“Muitos desses inventores se orgulham de suas criações, que consideram geniais, mas não medem o sucesso delas”, diz Lydia Drumright, especialista em análise de dados médicos e professora da Universidade de Cambridge, uma das mais prestigiadas do Reino Unido.

Realidade Virtual
No entanto, algumas dessas inovações, que a princípio poderiam parecer embustes tecnológicos, já estão sendo testadas em hospitais.

Um dos exemplos é a realidade virtual. A tecnologia VR permite criar universos fictícios para melhorar a experiência do jogo. Há mais de uma década, cientistas da Universidade de Washington, em Seattle, nos Estados Unidos, perceberam que podiam fazer novo uso dessa tecnologia.

Um dos primeiros pacientes a usar a realide virtual foi o sargento Sam Brown, que sofreu queimaduras graves em sua primeira missão ao Afeganistão. Ele relatou que usar o equipamento o ajudava a se distrair das dores excruciantes causadas pela troca diária dos curativos.

A premissa é a seguinte: uma vez que a realidade virtual permite controlar todos os estímulos visuais em um ambiente tridimensional, os pacientes passam a imaginar que estão em um universo paralelo. A interatividade acaba por absorver sua atenção, permitindo-lhes realizar ações que talvez não fossem possíveis no mundo real. As empresas estão agora explorando novas possibilidades para a realidade virtual: combate a fobias, terapia física e cognitiva e gerenciamento do transtorno de estresse pós-traumático.

Em hospitais e escolas de medicina, esse tipo de tecnologia também pode ser usado para melhorar o treinamento dos médicos, a partir da simulação de procedimentos cirúrgicos complicados, como a separação de gêmeos siameses.

De acordo com Miki Levy, co-fundador da startup israelense VR Health, a realidade virtual poderia representar economias para o setor da saúde, facilitando a recuperação, mantendo pacientes idosos ativos e possivelmente, quando se trata do aliviar a dor, reduzindo a dependência de opiáceos, uma droga que vem causando uma epidemia nos EUA.

A realidade virtual já está fazendo diferença na vida de pacientes como Ety Yaakobovich. Ela faz uso do equipamento da VR Health para aliviar seus sintomas de fibromialgia, que causam dor crônica, rigidez e dificuldade de concentração. Yaakobovich e seu médico reúnem dados de cada movimento que ela faz para medir seu progresso.

Mas essas tecnologias também poderiam revolucionar a saúde de forma muito mais significativa graças às oportunidades que oferecem para coletar e analisar dados.

Com a popularização das pulseiras e relógios digitais que monitoram nossos sinais vitais, sem falar na possibilidade cada vez mais concreta de dispositivos inseríveis ou ingeríveis, os dados disponíveis para pacientes e médicos vão explodir.

Essa enxurrada de informações sob o controle do paciente vai mudar radicalmente a estrutura atual do setor de saúde, segundo Bertalan Mesko, editor do The Medical Futurist, um site que se dedica a acompanhar as tendências de tecnologia nessa área.

Mesko diz acreditar que, a partir do momento em que esses dispositivos passem a nos alertar de forma confiável o que há de errado conosco, o médico deixa de ter o monopólio da análise das informações sobre a nossa saúde.

“A hierarquia que existe hoje entre médico e paciente passa a se tornar mais uma parceria…o paciente deixa de ser passivo e se empodera, de forma a cuidar do gerenciamento de sua doença”, diz ele.

Combinado com a proliferação de aplicativos que oferecem consultas médicas pela internet, como a britânica Babylon, a alemã Ada e a chinesa Ping An Good Doctor (PAGD), cresce o espaço para mudar a estrutura dos serviços médicos básicos, argumenta Mesko.

Tecnologia disruptiva?
Esses serviços de “verificação de sintomas” usam inteligência artificial. Funciona assim: um algoritmo vasculha um enorme banco de dados de casos anteriores para extrair uma conclusão a partir das informações que recebeu. Na China, quase 50 milhões de pessoas já usam o PAGD todos os meses, que inclui um “ecossistema” de assistência médica que se estende desde uma farmácia online até a medicina tradicional chinesa e referências para cirurgia cosmética.

A classe médica tem opiniões distintas quanto ao surgimento dessas tecnologias.

Segundo Ana Maria López, presidente do American College of Physicians, maior organização de especialidade médica dos Estados Unidos, esses novos dispositivos poderiam, por um lado, liberar os médicos para se dedicar a pacientes mais necessitados em consultas presenciais. Por outro, diz ela, poderiam ter o efeito contrário: com mais informações a seu dispor, os pacientes recorreriam aos médicos ao menor sinal de um problema.

Andrew Goddard, presidente do Royal College of Physicians em Londres, organização voltada a melhorar a prática da medicina, concorda que as novas tecnologias devem ser acolhidas, mas diz estar preocupado de que algumas delas não se adequem a todos os pacientes.

“Na parte de trás do meu iPhone, tenho um dispositivo que me permite medir minha frequência cardíaca e encaminhá-la por email ao meu cardiologista”, diz.

“Imagine se você tem 80 anos, vive sozinho, não sabe usar um smartphone. E talvez nem saiba mexer num computador”.

“Minha preocupação com essa tecnologia é de que ela vai criar uma divisão ainda maior na área da saúde. É empoderador para alguns pacientes, mas para outros, não.”

Mas enquanto os médicos ainda não chegaram a um consenso, o setor de tecnologia segue avançando. Além da proliferação de novas empresas, gigantes da tecnologia estão investindo em aplicativos e serviços médicos.

A Apple espera explorar o potencial do iPhone e do Apple Watch para integrar dados pessoais de saúde com novos serviços, enquanto o Google investiu em empresas que usam IA para diagnosticar doenças, como a DeepMind, que recentemente anunciou progressos na análise de exames de vista. E o Ten Cent da China uniu forças com a startup Medopad, baseada em Londres, para usar a IA no tratamento do Mal de Parkinson.

A Amazon, por sua vez, estabeleceu uma parceria com o fundo Berkshire Hathaway e com o banco de investimentos JP Morgan com o intuito de revolucionar o sistema de saúde nos EUA. Apesar de manter os detalhes sob sigilo, o dono da Berkshire, o bilionário Warren Buffett, famoso por sua perspicácia financeira, disse que o objetivo era desafiar a “tênia faminta” dos custos de saúde.

O problema é que o avanço das novas tecnologias esbarra em questões estruturais subjacentes: a informatização dos prontuários médicos e o estabelecimento da regulamentação de privacidade desses dados.

Por essas razões, Lydia Drumright diz que o desenvolvimento da IA em medicina tem sido “lento” até agora. Em partes mais pobres do mundo, essa tecnologia seria mais benéfica se a infraestrutura básica pudesse ser implantada, diz ela.

Mas empresas também estão se dedicando a enfrentar esse problema. A Medic Mobile, que opera em 20 países da Ásia e da África, ajuda profissionais de saúde a compilar registros eletrônicos in loco. Com um aplicativo de smartphone, eles podem saber quais pacientes estão grávidas, por exemplo, se foram vacinadas ou se correm risco de contrair doenças.

O aplicativo também oferece recomendação desde fornecedores de assistência médica a profissionais de saúde, dando-lhes acesso a um maior espectro de cuidados com a saúde. E usa a tecnologia mais acessível hoje em dia: o smartphone. Se a internet não estiver disponível, um serviço mais rudimentar ainda opera via mensagem de texto.

“Às vezes, são as coisas simples que fazem a maior diferença”, diz Regina Mutuku, diretora regional da Medic Mobile para a África. Em zonas rurais, com pouca comunicação e serviços escassos de saúde, esse tipo de tecnologia tem um valor inestimável, diz ela.

“A tecnologia permite que um voluntário informe o serviço de saúde que há um paciente a 20 km de distância que precisa de tratamento. Ou mesmo que lhe avise o que fazer enquanto espera o deslocamento ao centro médico mais próximo. Caso contrário, ele poderia acabar morrendo”, acrescenta.

Não devemos esperar que o Medic Mobile, ou qualquer outra tecnologia digital entrando em operação, represente o fim dos nossos problemas. Condições crônicas, como diabetes, doenças cardíacas e distúrbios musculoesqueléticos relacionados ao estilo de vida, e exacerbadas pela maior expectativa de vida, continuam sendo os maiores desafios no horizonte da saúde. Epidemias de difícil controle ainda devastam partes do mundo e doenças infecciosas continuam a testar nossa capacidade de resposta.

Mas a tecnologia digital está começando a mudar a forma como a medicina está sendo oferecida, fornecendo novas ferramentas para gerenciar esses desafios e apoiar os pacientes, e nos ajudando a entender nossa própria saúde de novas maneiras.

Além disso, abraçar uma revolução na maneira como os cuidados médicos são oferecidos pode ser a melhor esperança que temos, sugere Bertalan Mesko, porque sem isso já estamos em uma trajetória em que simplesmente não conseguiremos atender a demanda.

“Se mantivermos os cuidados de saúde como estão hoje, as pessoas perderão o acesso a profissionais médicos. Fisicamente, eles não serão capazes de acomodar as necessidades dos pacientes. Vai passar a ser um luxo ter uma consulta presencial com um médico”.

Uma transformação cultural que dá mais controle aos pacientes, automatiza alguns serviços, aproveita os insights que a AI pode fornecer e usa registros digitais e comunicação de forma mais eficiente é a única maneira de garantir que os médicos possam continuar atendendo os pacientes quando eles mais precisam, diz.

“Esse é o único cenário sustentável que temos”, diz Mesko.

“Temos que usar essas tecnologias”, conclui.

Clique abaixo para ler a matéria direto da fonte:

https://www.bbc.com/portuguese/geral-46510206



Fonte: BBC Brasil

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