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Parceria público-privada na área da saúde não funciona

Publicado em 22/01/2018 • Notícias • Português

Aos 90 anos, o pesquisador Isaías Raw mantém a mesma inquietude dos tempos de estudante de medicina da USP. “Sempre me meti com aquilo que não era a minha obrigação profissional”, disse à Folha em seu gabinete no Instituto Butantan, em São Paulo, onde, embora aposentado, passa boa parte de seus dias.

À essa característica se soma boas doses de orgulho pessoal e um espírito iconoclasta e combativo. “Se eu tenho uma ideia, eu preciso vender esse ideia; não para ganhar medalhões, mas para chegar na frente do espelho e dizer: consegui fazer”.

Na entrevista a seguir, Raw fala de sua trajetória dentro e fora do laboratório, dos desafios que encontrou no Instituto Butantan e de sua luta para desenvolver uma indústria nacional de vacinas.

*

Folha – O sr. sempre se aventurou fora do laboratório. Pode contar um pouco dessa trajetória?
Isaías Raw – Sempre me meti com aquilo que não era a minha obrigação profissional. Quando entrei na universidade percebi a necessidade de mudar o ensino de ciência. Aula no quadro negro não serve para ensinar ciência. O que um aluno precisa é aprender a ler, estudar e entender o conteúdo dos livros e dos artigos.

Nas décadas de 1950 e 1960, os professores não se comunicavam. Um não sabia o que o outro dava no seu curso. Muitas vezes eram dados conteúdos contraditórios. Se você não ensina a observar e tirar conclusões, você nunca vai formar cientistas. Por isso, criei o curso experimental de medicina na USP, onde acabamos com a ideia de que existem uma série de compartimentos comandados cada um por um professor, tudo era ensinado junto.

Também ajudei a unificar os exames vestibulares de São Paulo, mas logo isso foi liquidado, pois ia contra os interesses dos donos das faculdades. Criei ainda os minikits de química, eletricidade e biologia que tiveram um impacto importante na vida de muitas pessoas que vieram a se dedicar à ciência, mas ele morreu também. Mesmo destino, aliás, do curso experimental de medicina.

O fato de essas iniciativas não terem vingado entristece o sr.?
Estou acostumado com a ideia de que as coisas começam e acabam. O problema é que eu fui durando. Eu assisti o fim de todas essas coisas. As ideias chegam ao fim, mas têm um impacto. Alguma coisa sempre fica.

Como o senhor chegou ao Instituto Butantan?
Tinha voltado para o Brasil [após um período no EUA e em Israel], estava aposentado da USP [pelo AI-5] e surgiu a oportunidade, no começo dos anos 1980, de ir para o Butantan, que estava contratando alguns pesquisadores.

Como foi lá?
O instituto estava decadente e a produção de soro estava em crise. Inventei então um sistema para a produção de soro em que tudo iria acontecer dentro de um sistema fechado. O sucesso dessa fábrica de soro foi tão grande que me escolheram como diretor do Butantan [1991-1997].

Aos 70, tive de deixar a direção e tornei-me presidente da Fundação Butantan [1998-2009]. Essa fundação era importante porque a burocracia pública era impressionante. Qualquer licitação demorava um, dois anos, mas as crianças com doenças infecciosas simplesmente não podem esperar tanto tempo. Com a fundação, eliminamos a burocracia. O Butantan deslanchou e passamos a produzir 80% das vacinas que o Brasil utiliza, ao passo que os outros institutos compram e engarrafam.

Isso é o que o senhor chama de esquema Coca-Cola, certo?
Exatamente. A Coca-Cola não conta qual o conteúdo do xarope. Ela o vende para firmas que diluam, engarrafam e vendem. Foi o que aconteceu com muitos institutos no Brasil, em particular com Biomanguinhos [unidade da Fiocruz].

Eu quis fazer diferente e desafiei o cartel das quatro grandes empresas que dominam o mercado de vacinas do mundo. O Butantan passou a ter um prestígio internacional muito grande, pois não havia nenhum produtor de vacinas na América Latina, como continua não havendo. Por isso foi considerado pela indústria um mau exemplo. Afinal, se os outros países em desenvolvimento embarcassem no mesmo esforço, a indústria não teria para quem vender.

Num artigo em 2011 na Folha o senhor denunciou a tentativa de compra da fábrica do Butantan. Como foi esse episódio?
Certo dia sou avisado de que estava sendo discutida a venda da parte industrial do Butantan para um grande laboratório e escrevi o artigo denunciando a operação. A Sanofi desmentiu, mas até o valor, irrisório, chegou a ser discutido. A proposta de comprar as fábricas do Butantan houve, mas o meu berro na Folha sustou o processo. O que não significa que terminou. Pois daí surgiu a ideia da parceria público-privada. Só que isso não funciona na área da saúde.

Por quê?
Quando você faz um produto em que o único comprador é o governo, você não pode fazer uma parceria com uma empresa privada, pois esta, ao pôr o dinheiro, quer tirar o lucro. Se você tem uma fundação sem fins lucrativos, você não pode ter um sócio cujo objetivo seja ganhar dinheiro.

O senhor já criticou a vacina da Sanofi contra a dengue. Mantém essa posição?
Sem dúvida. A Sanofi embarcou na vacina errada. Primeiro porque não protege contra os quatro tipos e agora chegou-se a conclusão de que a vacina é um perigo para quem nunca teve dengue. Curiosamente, houve apenas um comprador para a vacina, o Estado do Paraná. O que ele vai fazer com essa vacina agora? Qual é a relação do governador do Estado do Paraná e o ministro da Saúde? O ministro é um político, ele não entende de saúde pública ou de vacinas.

E a vacina do Butantan com NIH [Institutos Nacionais de Saúde, dos EUA] contra a dengue, deve ficar pronta quando?
Estamos no fim dos ensaios clínicos. A vacina deve finalmente sair ano que vem, mas muito atrasada. Nós perdemos dois anos, pois a Anvisa não liberou a nossa vacina para testes, embora tenha liberado a da Sanofi.

Como o sr. mantém o vigor intelectual aos 90 anos?
O importante é se manter alerta. Leio semanalmente “Science”, “Nature” e outras revistas científicas.

O sr. tem algum hobby?
Não, nunca tive. Meu hobby é isso aqui, por isso eu preciso defender o Butantan.

Fonte: Folha de S.Paulo

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