Os riscos da telemedicina
Publicado em 01/03/2019 • Notícias • Português
Caro leitor, nesta semana visitei Veneza. O tempo estava ótimo, nem parecia inverno, o sol brilhava e o céu estava azul. Havia muitos turistas aproveitando a cidade, mas consegui andar por quase todas as ruas, pontes e canais. Alguns probleminhas aconteceram, mas, convenhamos, acontecem em todas as viagens. Não consegui ver alguns lugares interditados, também não consegui sentir o perfume da cidade ou almoçar nos restaurantes. Foi impossível entrar em lojas, museus e igrejas. Tive que me contentar com o que estava disponível. Ah, não consegui passear de gôndola, isso sim foi frustrante, mas fica para a próxima vez.
O que ficou faltando na minha visita com o Street View, do Google Maps, resolvo na visita presencial que planejo fazer. Telemedicina, teleconferência, telediagnóstico, assim como qualquer outra tele, são apenas parte da experiência vivida na relação entre médicos e pacientes. Você pode visitar, agora mesmo, a Amazônia, a Nasa ou o Museu Rodin na tela do seu celular. Ficará com a sensação de uma experiência incompleta.
Somos fascinados por tecnologia e por suas promessas. Arthur C. Clark, cientista e escritor, disse: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada parece ser mágica”. Quando se trata do uso de tecnologia na saúde, esse alerta ganha contornos dramáticos. Pode até parecer mágica, mas não é.
Usando terminologia médica, novas tecnologias devem melhorar o desfecho clínico do paciente, que é o resultado final de todo o processo de diagnóstico e tratamento. Desfecho não representa cura, necessariamente. Doenças crônicas não têm cura, têm evolução. Evolução da doença e, mais importante, da vivência do paciente com sua condição. Tecnologias que não auxiliam a melhora do resultado final do tratamento são inúteis do ponto de vista médico.
Médicos são ávidos consumidores de tecnologia, “first users”, no jargão do pessoal da informática. Não haveria de ser diferente com a incorporação de prestação de serviços médicos mediados por tecnologias, conforme a definição de telemedicina dada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Já fazemos telemedicina há tempos. Todo médico, todo dia, responde a um telefonema, uma chamada de vídeo, um e-mail, uma mensagem de aplicativo, para sanar uma dúvida dos seus pacientes.
Então por que o desconforto da comunidade médica com a decisão do CFM que normatizava a prática da telemedicina e que resultou na sua suspensão? Porque ficou claro que o resultado da normatização do CFM, na prática, foi promover o afastamento do médico e do paciente.
Médicos foram dispensados e substituídos por pareceristas situados a milhares de quilômetros. Falou mais alto o corte de custos, uma justificativa gerencial.
Não é isso que está ocorrendo no mundo. Ninguém lhe avisou, leitor, nem me avisou, também. Aos que veem aqui uma dissimulada defesa corporativa, lembro que a profissão médica se baseia na relação de confiança construída entre o médico e o paciente. Cada paciente é uma pessoa singular, com sua própria história de vida. A mesma condição clínica em João é diferente em Maria. Esse fato influencia o diagnóstico, a escolha e o resultado do tratamento.
O médico é o profissional treinado nesse mister, e a confiança do paciente é o que possibilita o melhor resultado do tratamento. Todos nós, antes de pensarmos no risco da uberização da medicina, devemos pensar é no risco da pasteurização dos pacientes.
Do ponto de vista técnico, o que tem se discutido sobre a incorporação da telemedicina na saúde? Em recente publicação sobre o tema, questões importantes foram destacadas para serem levadas em conta na implantação desses sistemas. O principal autor do texto (publicado no “New England Journal of Medicine”, 2017) é o dr. Reed Tuckson, ex-presidente da Associação Americana de Telemedicina.
A primeira delas imputa ao médico e às sociedades médicas a supervisão da incorporação das novas tecnologias. O médico é o profissional apropriado para avaliar se as novas tecnologias serão úteis para o paciente, identificar problemas com sua utilização e estimular a utilização das tecnologias que resultaram em benefício ao paciente.
Os outros pontos abordados dizem respeito às questões legais de licença para exercer a medicina em todo o país, à responsabilidade sobre as decisões tomadas a distância, a como se dará a contratualização entre médicos, pacientes e seguradoras, à segurança e confiabilidade dos dados e imagens que trafegam na internet, ao engajamento e satisfação dos pacientes com esses novos métodos de comunicação, entre outros pontos.
Com o acirrar dos ânimos nos grupos de discussão na internet, entre a publicação da resolução do CFM e sua suspensão, houve de tudo. Médicos chamando colegas de atrasados, corporativistas, inseguros. Ouvi a culta expressão “médico ludista”. Confesso que não escutava a palavra “ludista” desde o segundo grau. Ludismo foi um movimento de trabalhadores ingleses do ramo de tecelagem, no início da Revolução Industrial, que se notabilizou pela destruição de máquinas como forma de protesto. Ficou como sinônimo de pessoas avessas ao progresso ou novas tecnologias.
Não é o caso. Os atores que aguardavam a entrada em vigor da norma do CFM não demonstraram nenhuma das preocupações expressas no texto. O que se viu, na prática, foram atitudes de força sem qualquer constrangimento, sem qualquer discussão com a sociedade, sem preocupação com a avaliação dos desfechos. Todos seremos ou já somos pacientes. Precisamos opinar sobre o que nos é oferecido.
A gestão econômica da saúde pública e privada é fundamental, mas não pode se sobrepor a cuidar do paciente. Aqui não há uma visão romântica ou ingênua. A conta de ambos os sistemas é paga pelos usuários.
O CFM fez bem em revogar a decisão para melhor análise e entendimento. Não se enfraqueceu, como instituição, como pensam alguns. Cumpriu a razão de ser da instituição, criada em 1951, expressa nas palavras que constam de seus valores e missão: “Atuar com elevado padrão ético, buscando proteger a sociedade de equívocos da assistência decorrentes da precarização do sistema de saúde”
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Fonte: Valor Econômico