“A judicialização da saúde virou anarquia”, diz a advogada Lenir Santos
Publicado em 28/06/2016 • Notícias • Português
A advogada Lenir Santos é secretária de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde. Criadora do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), uma entidade que propõe formas de aprimorar o desempenho de instituições de saúde públicas e privadas, Lenir publicou sete livros.
O último, Judicialização da saúde no Brasil (Saberes Editora), trata das consequências do aumento das ações judiciais movidas por pacientes contra o Estado. Nesta entrevista, ela analisa o fenômeno crescente no país e comenta a reportagem especial de ÉPOCA sobre o caso dos falsos doentes de R$ 9,5 mihões.
Quarenta e seis pacientes exigiram na Justiça o fornecimento do remédio Juxtapid (lomitapida) no Estado de São Paulo. O remédio caríssimo (US$ 1.000 por dia) para combater o colesterol despertou a atenção da Secretaria Estadual de Saúde e levou a uma investigação. Mais que uma demanda habitual de saúde, a história se revelou um ousado caso de polícia.
O medicamento da empresa americana Aegerion não tem registro no Brasil. Foi aprovado nos Estados Unidos para uso apenas por portadores de uma doença genética rara, a hipercolesterolemia familiar homozigótica. Não é destinado ao tratamento de colesterol alto provocado por outras causas. Por ordem da Justiça, o governo estadual gastou R$ 9,5 milhões para fornecer o remédio a cidadãos que não tinham a doença.
Depois de dois anos de inquérito, a Polícia Civil e a Corregedoria-Geral da Administração do Estado de São Paulo estão convencidas de que houve fraude contra o Sistema Único de Saúde (SUS). Um esquema que envolveu o fabricante do remédio, representantes comerciais da empresa que recrutavam pacientes nos consultórios, médicos, a Associação Nacional de Doenças Raras e Crônicas (Andora), de Curitiba, e advogados.
O caso pode levar ao inédito indiciamento de 13 médicos de sete municípios, de responsáveis pela Aegerion no país e demais envolvidos. Nenhum dos responsáveis pela empresa no Brasil ou nos Estados Unidos aceitou dar entrevista a ÉPOCA. Em nota, a empresa afirma ter feito doações à Andora. Segundo o laboratório, o apoio financeiro foi interrompido. “Os funcionários da Aegerion no Brasil não estão autorizados a promover, induzir, incentivar ou recomendar prescrições dos produtos para o propósito aprovado pela FDA ou qualquer outra finalidade.”
ÉPOCA – Qual é a impressão da senhora sobre o caso Juxtapid? Os juízes foram manipulados?
Lenir Santos – Os juízes e os pacientes foram manipulados. Percebe-se que há um conluio entre o médico e o fabricante do medicamento. Em outras situações, as pessoas são induzidas a entrar com uma ação judicial contra o Estado. O caso dos falsos doentes é bem mais absurdo porque os cidadãos nem sabiam que estavam demandando contra o Estado.
ÉPOCA – Essa situação poderia ter sido evitada?
Lenir – Quando recebe uma demanda de um medicamento caríssimo [US$ 1 mil por dia], o juiz tem de ser mais cauteloso. A primeira pergunta que precisa ser feita é se a droga está na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais [a Rename é a lista oficial de medicamentos que o SUS é obrigado a fornecer]. O problema é que o Judiciário não reconhece essa lista e nem a relação de ações e serviços em saúde [Renases]. Os juízes continuam favorecendo pacientes que pedem produtos não oferecidos pelo sistema público de saúde. A judicialização foi criada para garantir justiça, mas na saúde ela promove mais desigualdade. Chegou a hora de dizer claramente que o direito à saúde tem limite.
ÉPOCA – E se o medicamento estiver na lista e o Estado não o estiver fornecendo?
Lenir – Aí não há o que discutir. O juiz tem de exigir que o Estado cumpra sua obrigação. A não ser que a justificativa para a falta de distribuição seja que a fábrica fechou e ninguém produz o medicamento.
ÉPOCA – No Reino Unido, a decisão sobre o que deve ser oferecido pelo sistema público de saúde cabe ao Instituto Nacional para a Saúde e Excelência Clínica (Nice). No Brasil, existe a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), do Ministério da Saúde. Por que ela não tem a mesma força?
Lenir – Ela é fragilizada. Até hoje não ganhou reconhecimento. Ninguém sabe o que é. Os juízes não a reconhecem. Acho que a Conitec não deveria estar dentro do Ministério da Saúde. Ela deveria ter mais liberdade para fazer suas análises. O órgão inglês [o Nice] tem total autonomia. A Conitec tem de ser reconhecida [como diz a lei] como o único órgão capaz de determinar o que deve ser incorporado no SUS. Se ela cometer erros ou abusos, as pessoas devem entrar com ações contra a Conitec, e não contra o SUS. O que acontece hoje? Os cidadãos entram com ações contra os pequenos municípios. Se o gestor destina recursos para atender ao pedido de um paciente e não oferece a mesma atenção aos demais, ele fere o princípio da igualdade. A judicialização da saúde virou anarquia.
ÉPOCA – O ministro da Saúde, Ricardo Barros, está determinado a enfrentar esse problema?
Lenir – O ministro está muito interessado. Já se reuniu com o Conselho Nacional de Justiça e tem realizado encontros para discutir a questão. Quer mexer nisso. Desde 2003, tenho dito que o papel do SUS não é oferecer tudo para todos. Ele não pode ser uma porta aberta para tudo. É preciso trabalhar com os limites do orçamento e com a medicina baseada em evidências.
ÉPOCA – Muitas das ações movidas pelos pacientes são justificáveis porque, frequentemente, o Estado não cumpre seu papel. Mesmo quando os cidadãos pedem drogas caríssimas e não aprovadas pela Anvisa, muitos juízes optam por concedê-las. Por que a ideia de que não é possível dar tudo a todos não os convence?
Lenir – Em muitas situações, o Judiciário é preguiçoso. Os juízes se apegam a uma decisão do Supremo Tribunal Federal [STF] segundo a qual, quando houver uma competência comum da União, dos Estados e dos municípios [como no caso da saúde], há uma responsabilidade solidária. O cidadão pode entrar com a demanda contra qualquer uma das instâncias de poder. Os juízes não querem enxergar outro artigo da Constituição. Segundo ele, o sistema público de saúde é um conjunto de ações e serviços dos entes da Federação. Eles têm de se integrar de maneira regionalizada e de forma hierarquizada, de acordo com a complexidade de serviços. Um município de 5 mil habitantes não pode oferecer transplante. Isso fica a cargo de uma cidade maior na região. Os juízes não entendem que a Constituição já determinou que o sistema funciona assim. A responsabilidade tem de ser compactuada. Existe um contrato que determina quais são as grandes responsabilidades do SUS, e todos os entes assinam. O juiz tem de olhar isso.
ÉPOCA – Os juízes não olham?
Lenir – Eles consideram só a história da responsabilidade solidária. Chamo isso de responsabilidade preguiçosa. Eles não querem entender o sistema. Nunca querem ver todas essas pactuações que existem entre os entes. Eles pegam o Artigo 196 da Constituição [saúde é direito de todos e dever do Estado], como se não existisse mais nada. E daí? A educação também é direito de todos e dever do Estado. Por um acaso ela é desordenada? A pessoa entra sem vestibular? Pode estudar numa escola e escolher fazer a prova em outro lugar? Pode fazer tantas escolhas como se faz nos casos de judicialização da saúde?
ÉPOCA – Há mais algum artigo da Constituição que os juízes deveriam considerar nas demandas de saúde?
Lenir – O caput do Artigo 198 da Constituição determina que todos os entes devem integrar os seus serviços de modo regionalizado, em rede, de forma hierarquizada. A Lei 8.080 traz mais detalhes. Ficou para o Ministério da Saúde, com aquele mundo de portarias, fazer todas as coisas da pactuação. É realmente difícil entender. Compreendo que não seja fácil para o juiz. Mas existe o Decreto 7.508, que regulamentou a Lei 8.080. Ele tem só uns 30 artigos e delimita direitinho essa questão. Hoje, há a Constituição, a Lei 8.080, o Decreto 7.508 e várias mudanças que aconteceram na Lei 8.080 [como a que trouxe a Conitec]. É básico que o juiz pegue isso. Mas eles não olham.
Fonte: Época Online