Bebês sob medida
Publicado em 11/01/2019 • Notícias • Português
Imagine inovações tecnológicas que nos permitam gerar filhos livres de doenças genéticas — ou, pelo menos, com um risco bastante reduzido de tê-las. Imagine, ainda, que possamos nos assegurar de que as crianças do futuro sejam significativamente mais inteligentes, saudáveis e, no geral, mais capazes que as do passado. Deveríamos dar boas-vindas a esse futuro! No entanto, muitos veem com alarme a perspectiva de designer babies, ou bebês geneticamente modificados. Um artigo recente, publicado na prestigiosa MIT Technology Review, mostra algumas das razões para esse alarme — e por que tais reações negativas são problemáticas. Há uma forte tendência de julgar inovações tecnológicas de alto padrão, ao mesmo tempo que se relevam sérios problemas no statu quo.
A autora do artigo, a jornalista científica Laura Hercher, não condena o uso de triagem genética para assegurar que bebês estejam livres de doenças. Sua preocupação é que isso criará desigualdades perigosas, porque nem todo mundo terá acesso às novas tecnologias, principalmente no começo. Segundo Hercher, alguns serão incapazes de se beneficiar delas, porque lhes faltam recursos ou instalações disponíveis em sua região geográfica. Outros se recusarão a utilizá-la porque a “tecnologia reprodutiva é menos aceita em grupos raciais, étnicos e religiosos nos quais ser visto como infértil carrega um estigma”. A menos que essas desigualdades sejam eliminadas, ela argumenta, bebês geneticamente modificados criarão disparidades perigosas.
“Nosso desconforto acerca de designer babies sempre teve a ver com o fato de que tal tecnologia torna tudo mais desigual — pega iniquidades existentes e as transforma em algo inato. Se não abordarmos essas diferenças, arriscamos criar uma sociedade na qual alguns grupos, por causa de sua cultura, geografia ou pobreza, carregam um fardo maior de doença genética. O que poderia ocasionar uma mudança mais profunda numa sociedade do que tomar doenças genéticas — algo que sempre foi a epítome de nossa humanidade compartilhada — e transformá- las em algo que só acontece com algumas pessoas?”, pontua Hercher em seu artigo.
O problema com essa crítica aos bebês geneticamente modificados é que ela ignora problemas muito mais graves no statu quo. Já vivemos numa sociedade em que doenças genéticas só “acontecem com algumas pessoas”. Acontecem apenas com os azarados o suficiente para nascerem com os genes errados. Não há dúvidas de que aqueles nessa categoria — e suas famílias — “carregam um fardo maior de doença genética”. Quando eu estava no ensino médio, havia um garoto em minha rua que tinha síndrome de Down. É bem óbvio que o fardo da doença genética está muito mais presente nele do que em mim.
Tampouco é verdade que os perigos de uma doença genética estejam distribuídos igualmente na sociedade, no sentido de que qualquer família tem mais ou menos o mesmo risco de passá-la para seus filhos. Nada é mais distante da verdade do que isso. Na maioria dos casos, os filhos têm mais chances de desenvolver uma doença genética se há um histórico dessa doença na família. Algumas atingem desproporcionalmente grupos raciais ou étnicos específicos. A doença de Tay-Sachs, por exemplo, está em grande parte confinada a judeus asquenazes e outros poucos grupos.
Ainda que a tecnologia de designer babies esteja disponível para algumas famílias, mas não para todas, ela poupará muitos pais do risco de repassarem doenças genéticas. Também reduzirá a desigualdade de modo geral, ao diminuir a percentagem pode ser valiosa para famílias e grupos étnicos com um histórico de doenças genéticas que, de outra maneira, teriam de fazer a dolorosa escolha entre privar-se de ter filhos — com exceção, talvez, de adoção — ou arriscar passar adiante uma condição debilitante.
Como com qualquer outro avanço tecnológico, a opção de bebês modificados provavelmente estará disponível para os mais abastados antes de se estender para o restante da população. Dados os precedentes, porém, é provável que ela se torne mais barata com o tempo e se estenda para ainda mais pessoas. Mesmo aquelas que não puderem aproveitar a nova tecnologia no início — ou aqueles que simplesmente não quiserem ou não necessitarem — poderão se beneficiar de sua introdução. Elas também viverão melhor numa sociedade onde menos pessoas sofrerão perda de seu potencial por doenças genéticas; logo, mais pessoas poderão ter uma vida feliz e produtiva.
Imagine que, graças à tecnologia, a família Jones tenha uma filha sem síndrome de Down ou sem doença de Tay-Sachs, que, em outras circunstâncias, poderiam tê-la afligido. O resultado disso é que ela cresce e se torna uma cientista bem-sucedida. Ela e o resto dos Jones não serão os únicos que estarão melhor. Outros se beneficiarão de novas descobertas feitas por ela. Se você multiplicar esse efeito por milhares de outros casos parecidos, fica claro que bebês geneticamente modificados podem ter um grande potencial de impacto positivo na sociedade, mesmo que a tecnologia não se torne universalmente disponível.
Como Hercher aponta, muitas pessoas que aceitam o uso da tecnologia para antecipar doenças se opõem a seu uso para “melhorar” a capacidade de crianças — para deixá-las mais inteligentes, fortes ou saudáveis, por exemplo —, outro foco de preocupações sobre desigualdade. Se algumas famílias são capazes de aumentar o Q.I. de suas crianças por meio de intervenção genética, enquanto outras não, os filhos dessas primeiras podem ter uma vantagem “injusta”.
Assim como as preocupações de Hercher sobre o uso da tecnologia para prevenir doenças genéticas, esse tipo de argumento ignora as enormes desigualdades já existentes no statu quo. Algumas pessoas já têm grandes vantagens em relação a outras devido, em parte, a dotes genéticos distintos. A tecnologia de bebês modificados poderia reduzir essas desigualdades na mesma medida que as aumenta. Por exemplo, se ela permite que uma grande parte da sociedade aumente seu Q.I. para, digamos, 150, crianças que teriam retardo mental se beneficiarão muito mais do que aquelas que teriam uma inteligência relativamente alta de qualquer forma.
E, assim como a prevenção de doenças, o aprimoramento genético pode ser uma bênção até para aqueles que não se beneficiarão dela diretamente. Pessoas que são mais inteligentes e saudáveis também serão mais produtivas. E o restante da sociedade — incluindo aqueles que não têm nenhuma “melhoria” genética — poderão aproveitar a produtividade extra. Para a maioria, os efeitos provavelmente serão grandes o suficiente para superar qualquer impacto negativo de ter de competir com os “melhorados” por empregos ou oportunidades educacionais específicas.
Se você duvida disso, considere se sua vida estaria melhor caso alguma força cósmica do Universo assegurasse que o Q.I. de todo mundo ficasse abaixo de 120 e apenas o seu fosse muito mais alto que isso. Você estaria, então, numa posição muito melhor para competir por empregos que requerem inteligência. Mas é mais provável que você estivesse muito pior do que antes, de modo geral, por causa do declínio em produtividade no restante da sociedade. E, se reduzir as habilidades de outros membros da sociedade piora sua vida, é provável que bloquear tecnologia que possa aumentar a produtividade de todos também piore.
Além de aumentar a produtividade e inovação, o aprimoramento genético pode ajudar a mitigar problemas de ignorância política, que atualmente têm um impacto muito negativo em políticas públicas. Aqui também podemos nos beneficiar do aprimoramento de outros, mesmo que nossos genes permaneçam os mesmos.
Nem a prevenção de doenças genéticas nem o aprimoramento de habilidades é um jogo de soma zero em que os ganhos de alguns só podem vir à custa de outros. Ao contrário, melhorias para uns também fornecem benefícios para muitos outros, incluindo aqueles com genes “normais”. Assim como com outros tipos de cuidados médicos, há uma justificativa para o governo subsidiar aprimoramento genético para os filhos dos pobres, já que reduzir a incidência de doenças genéticas pode reduzir também os custos de assistência médica a longo prazo. Entretanto, mesmo na ausência desses subsídios, a tecnologia de bebês geneticamente modificados provavelmente trará mais benefícios do que danos.
Apesar de meu entusiasmo pelos designer babies, apontarei algumas ressalvas. Primeiro, seria perigoso permitir que o governo esteja encarregado de manipulações genéticas. Entre outras coisas, governantes poderiam se aproveitar para assegurar que a próxima geração tenha as mesmas visões políticas do partido no poder (a orientação política é, em parte, geneticamente determinada). A solução para esse problema é deixar essas questões a cargo dos pais, em vez dos funcionários do governo, a não ser, talvez, por alguns padrões de segurança.
Um segundo perigo é que alguns aprimoramentos podem não ser socialmente benéficos, mas apenas combustível para uma “corrida armamentista” de soma zero. Por exemplo, alguns dados sugerem que pessoas mais altas têm vantagem ao competir por empregos e parceiros. É improvável, entretanto, que a sociedade estivesse melhor se todos fossem 30 centímetros mais altos. A altura é primariamente um “bem posicionai”, cujo benefício vem de ser mais alto que os rivais. Usar o aprimoramento genético para aumentar o tamanho das pessoas tem o potencial de fazer mais mal do que bem. Podemos ter uma população mais alta que precisa de mais comida e outros recursos, mas essa mudança não traria nenhum benefício para a sociedade em geral.
Suspeito que casos desse tipo são a exceção, não a regra. A maioria dos aprimoramentos que beneficiam o indivíduo também é provavelmente benéfica para a sociedade. Ainda assim, essa é uma questão a ser considerada.
Por fim, é possível que a tecnologia de designer baby nunca avance a ponto de podermos fazer intervenções além das muito modestas. Também é legítimo considerar a segurança e confiabilidade das inovações. Não tenho expertise científica para analisar essas questões. Mas, se designer babies são de fato viáveis, deveríamos querer que essa tecnologia se espalhe o mais rápido possível, e não que seja bloqueada por preocupações quanto à desigualdade.
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Fonte: Época