CORRIDA PARA SALVAR VIDAS
Publicado em 22/03/2020 • Notícias • Português
TEMPO EM VENTILAÇÃO
Sem os ventiladores, e a considerar a evolução de infecções no Brasil similar à de países como Itália e Espanha, equipes de emergência poderão se ver obrigadas a escolher, em um futuro não tão distante, quais pacientes ocuparão os leitos disponíveis com ventilador mecânico —enquanto outros acabarão deixados com cuidados paliativos ou à própria sorte. — É a maior preocupação. O mundo inteiro está comprando respirador neste momento — diz o infectologista David Uip, coordenador do Centro de Contingência de Coronavírus em São Paulo. Da primeira leva de 1.400 novos leitos de emergência que o governo de São Paulo estimou como necessários para receber casos graves, o estado conseguiu verba para pouco mais de mil. A lei brasileira diz que, para entrar em funcionamento, cada leito de UTI deve ter ao menos um ventilador mecânico. — Desses novos leitos, 500 já estão prontos para, havendo necessidade, serem abertos em uma semana — diz o secretário de estado da Saúde, José Henrique Germann.
O estado de São Paulo concentra a maior parte dos casos de coronavírus. O prefeito da capital, Bruno Covas, anunciou que a prefeitura vai criar mais duas mil vagas de UTI. Será necessário correr para providenciar leitos, ventiladores e pessoal para operá-los no prazo anunciado por ele, de duas semanas. — O problema é que esses pacientes permanecem longo tempo em ventilação. Um paciente fica em média seis dias na UTI; o com Covid-19 fica duas semanas, chegando a até 20 dias em alguns casos. Vai chegar uma hora em que esse recurso pode se exaurir —explica Suzana Lobo, presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib). Apenas quatro empresas fabricam esses equipamentos no Brasil: Vyaire, Takaoka, Leistung e Magnamed. Além delas, multinacionais como GE, Philips e Medtronic distribuem aparelhos importados — pouco acessíveis por causa da demanda global. — Os ventiladores são, sem dúvida, o maior gargalo —diz Fernando Silva, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alta Tecnologia de Produtos para Saúde (Abimed). Antes da crise, a demanda brasileira por ventiladores era de duas mil unidades por ano, número irrisório frente à explosão na demanda por causa do coronavírus. Nesta semana, autoridades médicas da Itália pediram quatro mil unidades a fabricantes internacionais, mas só conseguiram 400. Cada aparelho custava antes da crise entre R$ 40 mil e R$ 200 mil, nas contas do consultor em gestão da saúde Carlos Suslik, que tem experiência na administração de unidades importantes, como o Hospital das Clínicas, em São Paulo. — Esses aparelhos não tinham uso tão intenso numa UTI como têm, por exemplo, os aparelhos de reanimação cardíaca. Por isso, o comércio tinha pouca escala antes da epidemia —diz Suslik. Na última sexta, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, reconheceu o problema e afirmou que o governo estava em contato “com três iniciativas privadas associadas para aumentar a linha de produção, porque ele (o respirador) tem que ser um equipamento preciso”. O presidente da GM do Brasil, Carlos Zarlenga, falou da possibilidade de fabricar peças dos ventiladores em linhas de produção da montadora paradas com a queda brusca nas vendas. Além da GM, a Ford e a Mercedes-Benz demonstraram interesse em fabricar os equipamentos. As montadoras estão dialogando com a ABDI,órgão vinculado ao Ministério da Economia para políticas industriais. A expectativa é de uma parceria na semana que vem, segundo pessoas a par das negociações.
DOAÇÕES CIVIS
No rol de iniciativas, já há projetos saindo do papel. Em São Paulo, uma rede de empresários e lideranças da sociedade civil arrecadou R$ 5,4 milhões em doações na semana passada para comprar 87 respiradores a serem distribuídos por 11 hospitais públicos da Grande São Paulo, numa iniciativa coordenada com o governo paulista e com o Hospital A.C. Camargo. Eles devem ser instalados entre abril e maio. A meta é chegar a 300 respiradores nas próximas semanas e espalhar a rede de doações no Rio, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. O Programa de Engenharia Biomédica da Coppe/UFRJ também estuda a viabilidade de desenvolver um modelo de ventilador mecânico de baixo custo e complexidade, que possa ser construído em massa, em pouco tempo. Só que não basta ter o ventilador. Outro problema é a gestão desses leitos com ventilador mecânico, para não desguarnecer quem está sendo tratado por outras doenças, mas também para liberar espaço aos casos de coronavírus que vão aumentando. —Temos que dedicar leitos a essa nova situação entendendo que o mundo não acabou. Ainda há necessidade para outras doenças. Não dá para tirar um indivíduo que precisa de UTI para colocar outro. Esse sistema precisa de gestão para rodar mais rápido, ter estrutura — diz o infectologista David Uip.
RECURSOS HUMANOS
O professor da UniRio e especialista em Medicina Intensiva João Luiz Ferreira Costa alerta ainda para a alta quantidade de profissionais necessários nas UTIs. O recomendado é ter um médico para cada dez leitos, assim como uma enfermeira para cada oito. Também são necessários técnicos de enfermagem e fisioterapeutas. Com o aumento da demanda, rapidamente a taxa média de médico intensivista saltará a um para 15 leitos, e daí para mais. — Se ocorrer alta proporção de infecções, nem com todo o dinheiro do mundo haverá tempo de produzir ventiladores, mas também não adianta ter os equipamentos e não ter profissionais suficientes —diz Costa. Suzana Lobo, da Amib, diz que será preciso contratar pessoal e garantir equipamento para protegê-los:
— Já vemos alguns centros solicitando socorro para equipamentos de proteção individual, como máscaras. São itens essenciais. Na hora em que recebe o paciente, o profissional de saúde precisa estar protegido para poder voltar no dia seguinte. No Hospital Israelita Albert Einstein, onde foi testado o primeiro caso de coronavírus no Brasil, a rotina já mudou radicalmente. — O protocolo de segurança teve de ser reforçado, e as horas de trabalho também. Trabalho de 7h às 21h, e acho que só vai aumentar. Meu lazer acabou. É cansativo, mas é um momento histórico, de desafio —diz o infectologista Moacyr Silva Junior. Reuniões diárias na sala de crise do hospital não raro viram “sessão de terapia”. Já houve profissional em crise porque queria “roupa de astronauta” para tratar pacientes. E o ânimo balança no caso de famílias com mais de um integrante infectado e internado em leitos diferentes, sem poderem se ver. — Nunca vivemos uma situação dessa — diz o infectologista. — A demanda só tem aumentado, e a epidemia está em ascensão. Vamos trabalhar muito ainda.
Fonte: O Globo