Implantes no corpo viram cartão, chave e termômetro de humanos e animais
Publicado em 01/03/2019 • Notícias • Português
?”Quer meu cartão de visitas?”, perguntou um holandês de rosto redondo e voz baixa, esticando seu braço direito. Com poucos minutos de conversa, esta repórter esfregava seu celular na mão do desconhecido, até algo pular na tela. “Pronto, são meus contatos”, disse, num sorriso tímido.
Seu nome é Patrick Paumen, e seu cartão informa que ele é “biohacker, ciborgue, grinder e transhumanista com 17 implantes”. Um dos implantes é justamente para armazenar o cartão, enquanto os outros abrem a porta de sua casa e a cancela do estacionamento de seu escritório, além de destravar seu celular, gerar senha do computador e ainda medir sua temperatura.
Paumen era um dos participantes da quinta edição do BodyHacking Con, em Austin (Texas), um evento que discute as várias formas de aplicar tecnologia ao corpo humano, como próteses superavançadas, novos tipos de drogas e implantes na pele.
Durante dois dias, profissionais da indústria deram palestras e workshops, assim como cientistas amadores veteranos, conhecidos por usar o próprio corpo como experimento, atividade que lhes rendeu os nomes de biohackers ou grinders.
“Não preciso mais ficar procurando as chaves de casa ou ter receio de perdê-las ou ser roubado. É só aproximar meu braço”, disse Paumen, 34, tirando da mochila uma série de parafernálias para explicar seus implantes, como uma seringa para aplicar os microchips, geralmente do tamanho de dois ou três grãos de arroz. Ele deu um workshop sobre programação dos chips.
A FDA (a Anvisa americana) aprovou implantes de chips de frequência de rádio (conhecidos como RFID) em 2004 para casos médicos e, dez anos depois, afirmou não ter nenhum registro de problemas.
Implantes do tipo já são comuns em animais. Privacidade é outra preocupação, mas os fabricantes avisam que os chips só podem ser lidos de uma distância muito curta.
O americano Tim Cannon, por exemplo, criou diversos dispositivos, incluindo um quase do tamanho de um maço de cigarros, que ficou por 90 dias em seu braço.
O implante tirava a temperatura de Cannon a cada cinco segundos e enviava para um termostato ajustar a temperatura da casa.
“O projeto deu certo, mas tinha uns ataques de pânico. Quando tiramos, vimos que a bateria estava inchando”, lembra.
Mas Cannon conseguiu capitalizar o experimento. Ele criou a Livestock Labs para usar a tecnologia em gados. Um teste foi feito em quatro vacas em 2018 em Utah e, neste ano, outras centenas na Austrália ganharão rastreadores similares (e bem menores) ao original humano.
É possível saber a frequência cardíaca e temperatura dos animais, assim como detectar dados diversos através de seus movimentos, como alimentação. O Brasil é o terceiro mercado em potencial, e Cannon afirma que andou conversando com executivos da JBS.
“Se uma vaca está com febre, mil vacas são tratadas de uma vez com antibióticos e isso não é nada bom. Mas se você sabe de antemão que um animal está ficando doente, você pode separá-lo e tratá-lo”, disse Cannon. “Combinamos bem-estar do animal com negócios. Dá para fazer dinheiro tratando melhor suas vacas.”
Ainda assim, Cannon segue fiel às suas origens. “Meu objetivo principal continua sendo alterar a biologia humana e impactar o jeito como experimentamos o mundo”, disse. “Se no meio do caminho pudermos ajudar os animais, melhor ainda.”
No evento em Austin, uma empresa aplicava chips nos interessados, numa mesa cercada de curiosos.
“Você está nervosa, pense em cachorrinhos brincando”, disse o funcionário de luvas, sentindo a pele entre polegar e indicador de uma mulher, antes de dar a picada e introduzir o implante. Uma gota de sangue saiu e logo foi coberta por um adesivo curativo.
Na edição de 2018, apenas seis implantes foram feitos. Já nas primeiras horas da conferência deste ano, seis pessoas pagaram para ser “chipadas”. Em dois dias, mais algumas dezenas.
O microchip mais avançado disponível no mercado custa US$ 139, e uma versão de US$ 349 está em teste. Chamado VivoKey, foi criado por Amal Graafstra, também fundador da Dangerous Things, uma loja online para biohackers, com sede em Seattle.
“É tecnicamente viável fazer pagamentos com o VivoKey, mas Mastercard e Visa ainda não deram permissão”, disse Graafstra, que afirma ter algumas dezenas de clientes no Brasil. O chip é um minúsculo computador (2 mm por 12 mm) que lê aplicativos e pode realizar criptografia de dados, gerar senhas, abrir portas e aprovar transações de moedas digitais, como bitcoin.
Na Suécia, a maior empresa de trens e a maior companhia aérea do país permitem o uso de chips em vez de bilhetes. Nos EUA, uma empresa em Wisconsin criou chips para substituir crachás, chaves e senhas de computadores, iniciativa adotada por 60 dos seus 80 funcionários.
Mas há quem aderiu cedo à novidade e duvida da adesão em massa nos próximos anos pelo simples fato dos implantes não funcionarem tão bem. “Coloquei porque achei divertido e interessante”, disse uma participante da conferência. “Mas ainda não achei um uso prático. O cartão de visitas muitas vezes não funciona. Gosto mais de outro chip que brilha no escuro.”
Uma das pioneiras do biohacking amador é a britânica Lepth Anonym, que inspirou Patrick Paumen e boa parte da comunidade com uma série de posts e vídeos na internet sobre suas autocirurgias. Na época da faculdade, ela começou a ler sobre “transhumanismo”, um conceito para elevar as capacidades humanas com o desenvolvimento de novas tecnologias, como forma de redirecionar a evolução da espécie.
Anonym resolveu levar a teoria para a prática. “Pedi para um monte de médicos fazer o implante e eles eram completamente contra”, disse, já que não havia nenhum uso médico para os chips, nem estudos sobre as reações a longo prazo. “Estudei um pouco de anatomia, comprei uns bisturis, treinei e fiz eu mesma.”
Além de microchips, ela tem pequenos ímãs na ponta de alguns dedos, que servem para sentir campos eletromagnéticos, além de pegar clipes, moedas e outros truques. “Uma vez que seu cérebro aprende, vira parte do seu repertório de sentidos. Seria muito estranho não tê-los mais”, comentou Anonym, 30.
Um dos implantes deu errado. Um ímã que não havia sido revestido da maneira certa deformou seu dedinho esquerdo e permanece lá, como um aviso aos colegas dos perigos do amadorismo. “Preciso tirar, mas vai doer tanto que estou adiando”, disse.
Fonte: Folha de S.Paulo