OS FALSOS DOENTES DE R$ 9,5 MILHÕES
Publicado em 20/06/2016 • Notícias • Português
O comerciante Gaspar Landim dos Reis, de 64 anos, não rasga dinheiro. Desde que abriu um boteco na esquina de casa, num bairro popular de São José dos Campos, no interior paulista, ele tratou de deixar bem claras as regras do estabelecimento. A plaqueta pregada numa das paredes vermelhas da birosca sem eira nem beira alerta: “Se você não tem vergonha de pedir fiado, não tenho vergonha de dizer não”. Enquanto servia uma dose de Jurubeba Leão do Norte a um cliente assíduo, ele contou a ÉPOCA como se viu envolvido num esquema que provocou um prejuízo de R$ 9,5 milhões à Secretaria Estadual de Saúde. Se não tivesse sido descoberto a tempo, o caso poderia ter consumido cerca de R$ 40 milhões. Bem mais complexo que o boteco de Reis, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido obrigado pela Justiça a rasgar dinheiro todos os dias.
O volume crescente de ações judiciais para fornecimento de medicamentos de alto custo (um fenômeno conhecido como judicialização) desorganiza o planejamento orçamentário das secretarias de Saúde nas três esferas de poder. É um problema para a União, os Estados e, principalmente, para os pequenos municípios. Não há milagre. Para atender às demandas urgentes de poucos pacientes que exigem tratamentos caríssimos (muitas vezes, sem benefício e com riscos inaceitáveis), os gestores deslocam verbas destinadas ao cuidado de milhares ou milhões de outros cidadãos. Assim como a corrupção e a má gestão, a judicialização da saúde é uma das importantes causas de desperdício de dinheiro público. Ela não pode mais ser ignorada, principalmente no momento em que se discute a redução de gastos sociais. Quando os médicos e a indústria farmacêutica estabelecem relações indevidas, quem perde é a população. Desta vez, elas viraram caso de polícia.
O metalúrgico aposentado que conta os trocados ganhos no bar decadente levou um susto quando foi intimado a dar explicações na delegacia. Lá, soube que havia obrigado o SUS a fornecer a ele um remédio importado para baixar o colesterol. Cada cápsula de Juxtapid (lo-mitapida), da empresa americana Aegerion Pharmaceu-ticals, custa cerca de US$ 1.000 por dia. São US$ 30 mil por mês e US$ 360 mil por ano. Mais de R$ 1 milhão por paciente. “Não sabia que tinha processado o Estado”, disse Reis a ÉPOCA. “Minha consciência está limpa.” O depoimento dele e de outros cidadãos convenceu as autoridades. No Estado de São Paulo, 46 pessoas exigiram o fornecimento do fuxtapid. “A maioria não sabia que havia entrado com ação judicial e nem sequer tinha a doença”, afirma Ivan Agostinho, corregedor-geral da Administração do Estado de São Paulo. “Os juizes foram ludibriados pelos laudos assinados pelos médicos. É puro estelionato, pago pelo cidadão”, diz.
Não é de hoje que parte da indústria farmacêutica faz um jogo triplo: estimula os médicos a prescrever drogas de alto custo ainda não disponíveis no SUS; financia associações de pacientes para que elas ofereçam apoio jurídico gratuito aos interessados em processar o Estado; e, por fim, determina livremente o preço dos produtos (quase sempre importados) ao gestor pressionado pelo tempo e pela ameaça de prisão. Essa prática eticamente questionável drena os recursos do SUS, mas não é ilegal. O caso Juxtapid é um escândalo de outra natureza. Depois de dois anos de inquérito policial, o esquema pode levar ao inédito indiciamento de 13 médicos de sete municípios, de representantes da empresa Aegerion e demais envolvidos. É o resultado da Operação Asclépio, batizada com o nome do deus grego da medicina.
O delegado Fernando Bardi, da divisão de investigações sobre crimes contra a administração, está convencido de que eles cometeram falsidade ideológica e crime contra a saúde pública. “Os médicos assinaram laudos falsos e a empresa encontrou uma forma de obrigar o Estado a importar um medicamento, antes mesmo da aprovação dele no Brasil”, afirma Bardi. Enquanto não tiver o registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a droga não pode ser vendida no Brasil nem promovida nos consultórios pelos representantes de vendas.
Os cardiologistas investigados assinaram laudos (muitos deles idênticos até nos erros de português) nos quais afirmavam que os doentes corriam risco de morte, caso não recebessem o remédio importado. O Juxtapid não se destina a combater o colesterol alto que 30% dos brasileiros têm. Ele foi aprovado nos Estados Unidos apenas para uso nos raros casos de uma doença genética chamada de hipercolesterolemia familiar homozigótica. Esse distúrbio acomete cerca de uma pessoa a cada 1 milhão, segundo a Organização Mundial da-Saúde. Para desenvolvê-lo, é preciso ter a infelicidade de herdar um gene defeituoso do pai e outro da mãe. Não é uma condição trivial, dessas que os especialistas veem muitas vezes na vida. “Em 40 anos de formado, vi meia dúzia de casos desse tipo”, diz Marcelo Bertolami, diretor da Divisão Científica do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo. Essa condição gravíssima impede a remoção do colesterol ruim (LDL) do sangue. Em geral, os pacientes têm mais que 600 miligramas por decilitro de sangue (nível seis vezes superior ao considerado satisfatório). Não só isso. Ocorrem outras complicações, como entupimento prematuro e progressivo das artérias e extensos xantomas (tumores benignos de pele, compostos de gordura, que podem aparecer em qualquer parte do corpo). A maioria dos pacientes não alcança os 30 anos.
A descrição em nada se parece com a condição física do comerciante Reis. Aos 64 anos, ele se mantém produtivo. Usa bengala por causa de uma artrose no quadril. Dois stents cardíacos, colocados no ano passado, ajudam a manter as artérias desobstruídas. “Em 2013, quando o médico receitou o Juxtapid, meu colesterol estava um pouco mais alto, mas não muito”, diz. “Entendi que ele estava ajeitando para a gente pegar um medicamento mais em conta – não que eu estivesse processando o Estado”, afirma. Segundo Reis, o cardiologista José Eduardo Guimarães agendou um dia para que os pacientes conversassem, no próprio consultório, com um propa-gandista da Aegerion e assinassem um documento. Assim foi feito. Algum tempo depois, Reis recebeu um telefonema de Curitiba, no Paraná. Uma funcionária da Associação Nacional de Doenças Raras e Crônicas (Andora) avisava que o remédio já estava disponível para retirada num posto de atendimento da Secretaria Estadual de Saúde, em Taubaté, uma cidade vizinha.
Reis não viu vantagem em ter de se deslocar 40 quilômetros só para pegar umas cápsulas. Achou mais fácil continuar com os remédios que já usava: metformina para o diabetes e sinvastatina para o colesterol. Esse medicamento, considerado o tratamento-padrão nesses casos, custa menos de R$ 1 por dia. “Nunca fui buscar esse tal de Juxtapid”, diz. A ordem judicial obrigava o Estado a fornecer a Reis seis caixas de 5 miligramas e mais seis caixas de 10 miligramas. A cotação de preços feita em cinco importadoras foi infrutífera. A Aegerion mantinha acordo de exclusividade com uma única importadora e determinava o preço: US$ 28.600 foi o valor cobrado da Secretaria Estadual de Saúde por uma caixinha de 28 comprimidos, em agosto de 2014. Na ocasião, o dólar valia R$ 2,515. E assim o governo paulista gastou R$ 71.900 por mês com um redutor de colesterol que o paciente nunca foi buscar. Rasgou dinheiro público, mas acatou a ordem judicial. Se Reis não tivesse desistido, o tratamento completo determinado pelo juiz custaria R$ 914 mil por ano. Esse roteiro nonsense poderia ler consumido cerca de RS 40 milhões sem que as autoridades percebessem o disparate. O que despertou desconfiança foi o grande número de laudos assinados pelo mesmo médico: o cardiologista José Eduardo Guimarães. Se a doença rara acomete uma pessoa a cada 1 milhão, como um único profissional teria alcançado a proeza de localizar 19 portadores em São José dos Campos, uma cidade de apenas 680 mil habitantes?
As coisas começaram a fazer sentido quando os investigadores descobriram a relação de Guimarães com o representante comercial James Ramos de Siqueira. O perfil dele na rede social Linkedln sugere um profissional experiente na área de criação de demanda para medicamentos de alto custo, com passagem por três empresas farmacêuticas. Como gerente de vendas da Aegerion, Siqueira era responsável pela divulgação do Juxtapid no interior de São Paulo. Os pacientes entrevistados por ÉPOCA contaram como foram abordados por ele dentro do consultório de Guimarães.
A dona de casa Aparecida de Fátima Souza, de 55 anos, se trata com o mesmo cardiologista há mais de dez anos. Numa consulta de rotina, percebeu que Siqueira puxava conversa com os pacientes na recepção. Ela e a filha, a técnica de enfermagem Fernanda de Oliveira Souza, de 27 anos, têm colesterol alto. Para controlá-lo, sempre tomaram sinvastatina. Os índices oscilam. Em alguns exames de sangue, eles aparecem dentro da normalidade. Em outros, na faixa considerada muito elevada (índice maior ou igual a 190 mg/dl,). Em nenhum dos exames mostrados por Aparecida a ÉPOCA os níveis ultrapassam os 600 mg/dL (um dos sintomas da hipercolesterolemia familiar homozigótica). Como milhões de outros brasileiros, Aparecida precisa tomar remédios contra o colesterol porque tem vários fatores de risco para doença cardiovascular. Sofreu um infarto aos 45 anos, que exigiu a colocação de duas pontes de safena e uma mamária. Outras duas angioplastias foram necessárias para instalar seis stents. É diabética e hipertensa. Ainda assim, não aparenta sofrer dos graves sintomas da doença rara. Nem ela nem a filha foram orientadas a fazer o exame genético que poderia confirmar o diagnóstico. A abordagem feita pelo propa-gandista Siqueira foi direta. Segundo Aparecida, ele perguntou se elas tinham interesse de preencher um cadastro para receber de graça um novo remédio contra o coleste-rol. No mesmo dia, o médico perguntou se elas gostariam de experimentar o Juxtapid. Ambas aceitaram.
Guimarães preencheu um relatório médico idêntico no qual afirma que elas eram portadoras de distúrbio genético raro que ameaçava a vida. Ressalta que a lomi-tapida seria a única droga capaz de controlar o colesterol. Na recepção, o propagandista Siqueira registrou os dados pessoais dos documentos das pacientes e os resultados dos exames num laptop e pediu que elas assinassem um documento. Ambas afirmam não ter recebido uma cópia. “O médico disse que ia passar os resultados dos nossos exames para o propagandista para comprovar que tínhamos colesterol alto há muito tempo”, diz Fernanda. “Em nenhum momento eles nos explicaram que estávamos processando o Estado.”
Algum tempo depois, elas receberam os telefonemas da Andora, a associação de pacientes do Paraná. Exatamente como aconteceu com o comerciante Reis. O Juxtapid começou a ser entregue pela farmácia da Secretaria Estadual de Saúde, em Taubaté. O fornecimento era irregular. Às vezes chegavam as caixinhas de Fernanda, mas não as da mãe. Certa vez, o advogado designado pela Andora marcou um encontro com Aparecida em Taubaté para exigir o fornecimento do produto. Incomodadas com a confusão e sem notar os benefícios do Juxtapid, elas desistiram de tomar o remédio. Mãe e filha contam que só perceberam onde haviam se metido quando foram chamadas à delegacia. “Fomos enganadas”, diz Aparecida. “Envolver a gente numa coisa horrorosa, sem consentimento, é muita falta de respeito.” Aparecida não perdeu a confiança no médico. Continua a se tratar com ele. Diz que Guimarães sempre foi dedicado e atencioso. “Acho que ele foi vítima como nós.”
A maior vítima foi o SUS. Aparecida e Fernanda retiraram o remédio durante quatro meses. Com uma única família, o Estado gastou RS 686 mil. Nenhuma delas percebeu ganhos de saúde. Por sorte, não sofreram graves efeitos colaterais, como alguns dos outros pacientes que tomaram lomitapida. “Houve relatos de náuseas, dores de cabeça e problemas hepáticos. Um dos pacientes sofreu paralisia temporária de um dos braços”, diz o delegado Fernando Bardi. O remédio pode causar acúmulo de gordura no fígado. O risco de cirrose e insuficiência hepática é elevado demais para que o Juxtapid seja visto como uma opção segura para qualquer paciente em luta contra o colesterol alto. A história da droga é prova disso. Desenvolvida nos anos 1990 por químicos da gigante Bristol-Myers Squibb, a lomitapida passou por estudos clínicos em 1997. A expectativa de que pudesse se tornar um blockbuster como outros redutores de colesterol caiu por terra quando os testes apontaram efeitos colaterais inaceitáveis. A solução foi destiná-la ao tratamento de um público restrito: os portadores da severa hipercolesterole-mia familiar homozigótica. Em 2006, a droga foi licenciada pela Aegerion para uso somente nesses casos. Atualmente, a empresa dispõe de apenas dois produtos.
O cardiologista Marcelo Bertolami, do Instituto Dan-te Pazzanese de Cardiologia, analisou cerca de 40 casos de pacientes que exigiram o Juxtapid na Justiça. Avaliou pessoalmente 11 desses pacientes e estudou as informações registradas nos prontuários médicos apreendidos pela polícia nos consultórios investigados. Concluiu que apenas dois pacientes eram portadores da doença rara. “Não chegamos a fazer exames genéticos”, diz Bertolami. “Basta olhar para reconhecer uma doença como essa. É um desastre, algo grave, raro e de evolução muito ruim.” Felizmente, segundo ele, os pacientes que receberam o medicamento não chegaram a tomá-lo ou o usaram por pouco tempo. Uma das hipóteses levantadas pela Polícia Civil é que a empresa estivesse observando os efeitos da droga em pacientes sem a doença genética rara. O objetivo seria analisar se o remédio poderia ter outras indicações, além do uso para o qual foi aprovado nos Estados Unidos – o chamado off label.
Em seu site, a Aegerion afirma que a segurança e a efetividade do Juxtapid não foram estabelecidas em pacientes que têm colesterol alto provocado por outras causas – e não pela doença genética rara. No balanço financeiro publicado no primeiro quadrimestre de 2016, a empresa informa aos investidores que “a aceitação do produto fora dos Estados Unidos, inclusive no Brasil, pode ser menor do que a prevista”.
Relações indevidas entre os profissionais de saúde e a indústria de medicamentos e equipamentos sempre existiram. Em maior ou menor grau, essa é uma convivência marcada por agrados e favorecimentos eticamente questionáveis. Quem nunca se incomodou com a presença nos consultórios médicos de divulgadores de produtos que distribuem presentinhos, elogios e amostras grátis para as secretárias em troca da possibilidade de furar a fila dos pacientes e chegar aos médicos? Quando o doutor é o que a indústria chama de “formador de opinião”, o assédio costuma ir além. “Em qualquer outro segmento profissional, a oferta de viagens para congressos ou outras vantagens poderia ser entendida como corrupção ou leniên-cia. Na medicina, parece que é normal”, diz Bardi.
Por mais que pareçam habituais, essas práticas geram claros conflitos de interesse. Quando as relações comerciais extrapolam os limites, quem perde é o doente. “Não há dúvida do que aconteceu nesse caso”, diz o secretário estadual de Saúde, David Uip. “Vamos pegar os responsáveis e cobrar o ressarcimento aos cofres públicos.” Um dos objetivos da investigação é revelar se os médicos receberam dinheiro ou outras vantagens para prescrever o Juxtapid. Eles negam. Somente um deles confessou ter recebido da empresa uma viagem para um congresso em Buenos Aires. A Justiça paulista negou a quebra de sigilo bancário e telefônico dos médicos e a apreensão de documentos na empresa. “Ela deve ter jogado tudo fora. Essa prova foi perdida de forma irreversível”, afirma o corregedor Ivan Agostinho. No exterior, as normas são outras. Os pagamentos feitos a médicos ingleses estão relatados no site da Aegerion. E uma exigência legal de países como o Reino Unido. Em 2014, a empresa afirma ter pagado 22.400 libras a 13 médicos por consultoria, participação em pesquisa de marketing e outros serviços. Sobre o Brasil, não há nenhuma informação.
O Juxtapid é só uma parte do problema. São Paulo destina R$ 1 bilhão por ano para cumprir 47 mil demandas judiciais para fornecimento de medicamentos. É quase o dobro do que o Estado gasta (RS 600 milhões) com a distribuição regular de remédios para 700 mil cidadãos. A maioria das ações é ingressada por advogados particulares e se baseia em laudos e prescrições de médicos privados. Apenas 13% dos processos têm origem na Defensoria Pública, que atende pessoas com renda familiar mensal de até três salários mínimos. O mau uso do dinheiro público é explícito. Em cerca de 30% dos casos, os medicamentos fornecidos por ordem judicial não são retirados pelos pacientes. Na esfera federal, os gastos cresceram sete vezes entre 2010 e 2015 e consumiram R$ 3 bilhões. No ano passado, o Ministério da Saúde recebeu 3.900 demandas. O Juxtapid, exigido por 59 pessoas, custou RS 51,8 milhões.
A judicialização da saúde é um fenômeno brasileiro, fruto da interpretação literal feita por alguns juizes do Artigo 196 da Constituição. Aquele segundo o qual “saúde é um direito de todos e um dever do Estado”. A suposição de que o poder público seja obrigado a prover toda e qualquer invenção da indústria não prospera em outros países. Toda nação com bom sistema público de saúde oferece apenas os tratamentos e procedimentos previstos numa lista. E assim no Reino Unido, na França, na Espanha, no Canadá. Todos fazem escolhas e arcam com a impopularidade delas. Se adotasse a solução britânica, talvez o Brasil conseguisse fazer mais e melhor. Desde 1999, o Instituto Nacional para a Saúde e a Excelência Clínica (Nice), no Reino Unido, é o órgão responsável por comparar os custos e benefícios oferecidos por diferentes formas de cuidado médico. São os chamados estudos de custo-efetividade. A instituição realiza reuniões com representantes da sociedade (pacientes, médicos, indústria farmacêutica) para debater o que deve ou não ser oferecido pelo National Health Service (NHS), o sistema que banca 95% de toda a saúde no país. O que o Nice decide vale para todos.
No Brasil, nem todas as ações judiciais para fornecimento de medicamento são descabidas. Elas representam um instrumento legítimo, principalmente quando o Estado deixa de cumprir aquilo que, inegavelmente, é sua obrigação. A falta de atualização das listas para a inclusão de novos tratamentos no SUS é uma reclamação freqüente. Não há dúvida de que parte dos pedidos é justa e fundamentada. A maioria dos juizes, no entanto, não tem condições técnicas de avaliar se um medicamento importado garante mais benefícios de saúde que o tratamento convencional. Nem se a droga exigida pode colocar o paciente em risco. Com uma canetada, o juiz Emílio Mi-gliano Neto, da 7a Vara da Fazenda Pública de São Paulo, fez o Juxtapid chegar à dona de casa Aparecida de Fátima Souza. Uma decisão que rendeu um prejuízo de R$ 304 mil à Secretaria Estadual de Saúde e nenhum benefício à paciente. Ele afirma ter agido de acordo com os fundamentos jurídicos e confiado no relatório do cardiologista José Eduardo Guimarães. “A presunção do juiz é de que um pedido assinado por médico e advogado seja lícito”, diz. “Não havia como suspeitar de fraude.”
Segundo Migliano Neto, o juiz não tem de se preocupar com os aspectos técnicos das drogas exigidas pelos cidadãos. “Penso que do outro lado há um ser humano e, muitas vezes, somos a última esperança dele.” O advogado de Aparecida argumentava que, sem o remédio, ela poderia morrer do coração. O juiz, que infartou duas vezes, entendeu facilmente o sentido de urgência. Nas demandas judiciais, o destino do dinheiro da saúde não é determinado apenas pela lei. Nem pela real capacidade do tratamento de mitigar o sofrimento. Um juiz é produto de suas convicções e experiências. Com elas, ele decide. Na maior parte de seus dias, Migliano Neto investiga suspeitas de ilícitos cometidos por gestores públicos, como fraudes em licitações. Se um cidadão pede socorro sob o argumento da ausência do Estado, tem chance de convencê-lo. “Quando um advogado chega com uma certidão de óbito e me diz que o cliente não precisa mais do remédio que demorou a ser fornecido, é como se eu estivesse morrendo junto.”
Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma série de audiências públicas a respeito do impacto das demandas judiciais sobre o sistema de saúde brasileiro. De lá para cá, o fenômeno se agravou a ponto de virar assunto de polícia. “O caso Juxtapid demonstra que os juizes estão sendo manipulados”, diz a advogada Lenir Santos, secretária de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde. “A judicialização foi criada para garantir justiça, mas na saúde ela promove mais desigualdade. Chegou a hora de dizer claramente que o direito à saúde tem limite.” Na primeira semana de junho, o ministro da saúde, Ricardo Barros, firmou uma parceria com o Conselho Nacional de Justiça. O objetivo é criar núcleos de apoio técnico formados por profissionais de saúde de universidades públicas. Eles emitirão pareceres sobre as drogas requisitadas, com base nas melhores evidências científicas. O material vai servir para a consulta voluntária dos magistrados. A iniciativa pode se mostrar inócua enquanto o Brasil não decidir qual dos direitos à saúde pretende
priorizar: o individual ou o coletivo.
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Procurado por ÉPOCA, o cardiologista José Eduardo Guimarães não quis dar entrevista. Por e-mail intermediado pela advogada, ele afirma que prescreveu o medicamento porque os pacientes tinham colesterol de difícil controle. Diz não ter recebido do fabricante nenhum pagamento ou viagem. Confirma que o propagandista James Ramos de Siqueira forneceu a ele um modelo-padrão de relatório médico “a fim de instruir o processo de pacientes para os quais o medicamento fosse indicado”. Junto com ele eram anexadas cópias dos exames laboratoriais. Diz que os pacientes liam os documentos antes de assinar. Confirma que eles eram encaminhados para advogados indicados pela Associação Nacional de Doenças Raras e Crônicas (Andora). “Não vejo nada de antiético”, afirma Guimarães. “Minha parte é olhar o melhor interesse do paciente e não do Estado”, diz. “O custo não é algo a ser considerado por mim.”
A Andora se recusou a responder às questões objetivas levantadas por ÉPOCA. Em nota, afirma que “o custeio das atividades da associação é feito de forma absolutamente legal a partir da apresentação de projetos de auxílio e orientação para pacientes portadores de doenças raras a entidades que se dispõem a financiá-los”. Nenhum dos responsáveis pela Aegerion no Brasil ou nos Estados Unidos aceitou dar entrevista. Em nota enviada pela sede americana, a empresa afirma ter feito doações à Andora. Segundo o laboratório, o apoio financeiro foi interrompido. “Os funcionários da Aegerion no Brasil não estão autorizados a promover, induzir, incentivar ou recomendar prescrições dos produtos para o propósito aprovado pela FDA ou qualquer outra finalidade.” Localizado no interior de São Paulo, o representante comercial James Ramos de Siqueira também se recusou a dar entrevista. Disse estar desempregado.
Fonte: Revista Época