Pesquisas em marcha à ré

Publicado em 12/04/2016 • Notícias • Português
Stevens Rehen está quase sem dinheiro para pesquisar. O neurocientista lidera um estudo sobre os efeitos do vírus zika no sistema nervoso cujos resultados parciais, divulgados na última quinta feira, tiveram repercussão internacional. Mas este trabalho está seriamente prejudicado pelo atraso da verba da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio (Faperj). O órgão informou, recentemente, que a equipe do pesquisador receberia os recursos devidos. Mas, até agora, nada. Outros quatro projetos conduzidos por ele em seu laboratório na UFRJ têm financiamento de R$ 1 milhão aprovado desde o ano passado, mas a quantia não chegou.
O caso de Rehen não é isolado. A Faperj deve R$ 136,5 milhões de reais a 1.200 estudos contemplados em 2015, além de recursos para 4.500 bolsistas. Mas a situação ainda pode se agravar. O governo mandou à Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), no mês passado, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 19/2016, que, se aprovada, reduz à metade os recursos repassados para a Faperj. Para pesquisadores ouvidos pelo GLOBO, a medida significaria um retrocesso de até 20 anos na ciência fluminense.
Seria o fim de uma era de pujança para a pesquisa no estado. Nos últimos oito anos, desde que a Faperj passou a distribuir 2% da receita líquida fluminense, a produção de conhecimento pelas universidades e institutos de pesquisa aumentou em mais de 80%. Cerca de 18.800 projetos foram pagos. O Rio passou a concentrar 22% dos programas de excelência de pós-graduação do país e tem quatro universidades — Uerj, UFF, UFRJ e PUC — entre as 20 melhores do Brasil. A PEC, porém, prevê o corte de verbas pela metade — o equivalente a R$ 210 milhões.
Em nota, o governo estadual diz que a PEC ainda reservará 1% da receita fluminense a editais de pesquisa e 1% para pagamento de pessoal: “Dessa forma, será possível valorizar os recursos humanos e manter o quadro de pesquisadores”.
— Este argumento não é válido, porque hoje a verba destinada a editais equivale a 2% da receita. Se será apenas 1%, então existe um corte — rebate Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Diversas organizações científicas já divulgaram manifestos contra a medida. Grupos de pesquisa admitem que podem ser forçados a interromper estudos e dispensar bolsistas. Outras pesquisas, que estavam em fase avançada de planejamento, podem não sair do papel. Sem materiais e insumos para laboratórios, teme-se a saída de cientistas experientes e qualificados, um fenômeno conhecido como “fuga de cérebros”.
— Em breve, os recursos que usamos para o projeto da zika, que vem de outras fontes de financiamento, vão acabar — alerta Rehen, que tem 40% do investimento de seu laboratório vinculado à Faperj. — Há o risco de doutores altamente qualificados abandonarem nosso estado. Um dos pesquisadores da minha equipe, recém-chegado dos EUA, não está recebendo a bolsa da fundação, sua única fonte de renda. Os recursos referentes a janeiro só serão pagos no dia 9 de março, segundo comunicado da Faperj, e a situação será regularizada apenas em julho. Outro integrante do grupo seria contemplado com uma bolsa vinculada a um projeto aprovado no início de 2015, mas ainda não recebeu seu pagamento.
CONVITE PARA HARVARD
Diretor do Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de Macaé (Nupem), centro de pesquisas que integra a UFRJ, Rodrigo Nunes da Fonseca recebeu em agosto um convite para juntar-se ao Departamento de Biologia da Universidade Harvard, nos EUA.
— Não me sinto confortável em abandonar meus alunos agora, mas pode ser que, daqui a um ou dois anos, eu deixe o país — cogita. — Quase todos os laboratórios do Norte fluminense foram construídos com recursos da Faperj. Se a PEC for aprovada, no dia seguinte teremos que cortar as compras de qualquer produto, como reagentes, e os alunos não poderão custear projetos que foram aprovados em 2015.
Em meados do ano passado, o Nupem comprou, por R$ 200 mil, um equipamento para análise de DNA de micro-organismos das lagoas no Norte fluminense. A cada vez que é “ligada”, a máquina gasta cerca de R$ 5 mil. Até agora, por questões orçamentárias, ela foi usada cinco vezes.
— Eu esperava já tê-la acionado em pelo menos 20 ocasiões. Só tenho kits e receita para usá-la mais uma vez — comenta.
A neurocientista Suzana HerculanoHouzel, que desde o ano passado cogita continuar suas pesquisas fora do Brasil, destaca que, atualmente, a melhor bolsa da Faperj paga o equivalente a US$ 700 mensais. Se esta verba for cortada pela metade, não será suficiente para comprar sequer um tubo de anticorpos pelo preço original dos EUA.
— O cientista carioca já fazia milagre até 2014, quando a Faperj ainda tinha dinheiro para honrar seus financiamentos. Agora, a solução para evitar que todos os laboratórios fechem será escolher alguns poucos para continuar recebendo verbas — lamenta. — A mensagem do governo é que nosso trabalho é supérfluo, como se estivéssemos em um lugar que não sonha em atingir sua independência intelectual.
A importância da Faperj para os projetos científicos no estado pode ser medida na UFF. Lá, o número de bolsas saltou de 202 em 2006 para 720 em 2013. No mesmo período, o financiamento de projetos e bolsas pulou de cerca de R$ 300 mil para R$ 2,5 milhões.
Segundo o vice-reitor da universidade, Antonio Claudio Lucas da Nóbrega, estes índices beneficiaram, de diversas formas, as nove cidades onde há campus da UFF.
— Temos projetos como educação de comunidades indígenas em Angra dos Reis, aperfeiçoamento da agricultura em Santo Antônio de Pádua, fisiologia do exercício em Niterói. A ciência contribui para o desenvolvimento social de cada região. E agora os projetos correm risco de serem atrasados — avalia. — Em todas as universidades, os centros de pesquisa do interior serão os primeiros afetados, porque têm menos infraestrutura e tradição.
A Alerj, também em comunicado, assegura que a proposta não será “votada com pressa”, e que entidades científicas serão chamadas para discutir o projeto na assembleia nos próximos dias. Audiências públicas também discutirão as “questões constitucionais e estratégicas” da PEC.
A Faperj, por sua vez, afirma que as bolsas estão com um mês de atraso. “Alguns auxílios — programas de fomento à pesquisa — que não foram pagos em 2015 serão pagos em 2016”. O repasse de verbas para pagamento dos compromissos assumidos no ano passado serão determinados por um decreto do governador Luiz Fernando Pezão previsto para abril. O orçamento da Faperj para este ano ainda não foi definido.
Fonte: O Globo