Saúde em liquidação

Publicado em 13/05/2016 • Notícias • Português
A Câmara de Comércio França –Brasil revelou em março um número que surpreende. No ano passado, ela foi procurada por nada menos do que 308 empresas francesas interessadas em investir no Brasil. O setor mais cobiçado? Saúde. Apesar de o País passar por sua maior crise econômica em duas décadas, 77 empresas (25% do total) manifestaram a intenção de fazer negócios por aqui.
Francisco Balestrin, presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), acredita que todo esse interesse se deve à aprovação da lei 13.097, de janeiro de 2015. que permitiu a participação do capital privado na assistência à saúde. Mesmo com a forte recessão do ano passado, a receita dos “80 hospitais associados da Anahp atingiu quase RS 23 bilhões”.
O crescimento do setor vem sendo impulsionado pela procura por planos de saúde privados. De 2005 até 2015, o total de beneficiários dessas operadoras passou de 35 milhões para 50 milhões de pessoas (43%). O problema é que a rede privada de hospitais não dá conta dessa demanda. O total de leitos oferecidos por instituições particulares no período aumentou apenas 16,5% – de 111.476 para 129.884.
Na opinião do professor Mário Scheffer, da Faculdade de Medicina da USP, o setor privado investe muito pouco na expansão da rede: “O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) é quem financia os puxadinhos dos hospitais”, e é por isso que as lideranças do setor defenderam tanto a entrada do capital estrangeiro no setor. “É isso o que foi aprovado no Congresso, sem nenhuma discussão”, tendo por base “uma emenda de um deputado do grupo ligado ao presidente da Câmara. Eduardo Cunha”.
A única grande novidade da lei foi a abertura da rede hospitalar, uma vez que ‘”o capital estrangeiro já estava no setor da saúde há muito tempo, nas empresas farmacêuticas, nas redes de farmácias, nos planos de saúde”, segundo Scheffer. Em 2012. por exemplo, a empresa norte-americana United Health adquiriu 90% da Amil, a maior operadora de seguro-saúde do País, por US$ 4,3 bilhões (R$ 15 bilhões em valores atuais). No ano seguinte, a norte-americana CVS comprou a rede de farmácias Onofre por U$S 340 milhões (R$ 1,1 bilhão); e, em 2014, a Bain Capital levou a Intermédica por US$ 851 milhões (RS 2,9 bilhões).
Balestrin lembra que a iniciativa privada responde hoje por 55% dos investimentos no ramo, “ao contrário do que ocorre nos principais países europeus, onde o poder público participa com 70% dos recursos em média”. Em 2014, os planos de saúde despenderam R$ 104.6 bilhões, enquanto a União destinou R$ 98 bilhões ao SUS (Sistema Único de Saúde). Apesar de dispor de recursos muito maiores, o setor privado cuida de apenas 30% da população: o restante é atendido pelo sistema público. “O modelo SUS é um dos mais avançados do mundo e atende 150 milhões de pessoas”, informa Balestrin. “Mesmo com a falta de investimentos e, principalmente, de governança e seus desperdícios.”
O sistema público enfrenta uma das piores crises de sua história: “O ajuste fiscal (implementado por Joaquim Levy em 2015) cortou o SUS na carne”, diz Scheffer. Mas a sangria de recursos vem de longe – desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Um sucateamento que amplia as perspectivas de crescimento do setor privado à medida que estimula uma parcela cada vez maior da população a comprar um plano de saúde e obriga o próprio SUS a contratar serviços de laboratórios e hospitais privados. “Essa pode ser uma (Ias motivações do capital estrangeiro.” 0 programa “Mais Especialidades”. anunciado pela presidenta Dilma na campanha eleitoral, tinha essa meta. mas foi engavetado em meio à crise.
No final ilas contas, o setor público acabaria se tornando o grande financiador da expansão privada, tal como já ocorre na educação. por meio do ProUni (Programa Universidade para Todos) e do l ‘ies (Fundo de Financiamento Estudantil). As opções mais lucrativas ao capital externo estariam na oferta de leitos, de exames e de procedimentos. No caso dos planos de saúde, a lucratividade ainda é elevada, mas já foi maior: a diferença entre as receitas dos usuários e as despesas das operadoras com assistência vem caindo — em 2004. a arrecadação superou os gastos em 23.1%: em 2009, essa margem caiu para 20.6% e. em 2014, ela chegou a 17.8%.
Além disso, trata-se de um mercado bastante concentrado: as sete maiores operadoras respondem por 33% dos usuários. No setor hospitalar, ao contrário, a concorrência é muito mais intensa: o País possui hoje mais de 4.600 instituições privadas. Embora promissor, o mercado também enfrenta problemas: 126 planos tiveram seus registros cancelados no ano passado, e a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) tem aplicado algumas sanções pesadas. O controle exercido pela agência sobre os reajustes dos planos provocou uma drástica redução no percentual de participação dos planos individuais, hoje com uma latia de 19.4%.
A qualidade da fiscalização governamental, contudo, não é consensual. Segundo Balestrin. a ANS aprimorou muito a sua atuação nos últimos anos. “Hoje observamos uma agência reguladora bastante presente e preocupada com a qualidade da assistência ofertada aos pacientes da rede suplementar. Podemos citara transparência, o envolvimento dos diferentes elos da cadeia nas discussões que objetivam chegar a um consenso sobre os modelos de remuneração do setor e a qualidade da assistência ofertada pela rede credenciada.”
Scheffer pensa muito diferente: “A ANS foi totalmente capturada pelo mercado que ela deveria regular”. Para ele. isso ocorre porque tanto os candidatos a cargos no Executivo quanto no Legislativo recebem grandes recursos dos planos particulares para suas campanhas. Um levantamento feito por ele e Lígia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostrou que 40 operadoras doaram RS 54.9 milhões para 131 candidatos nas eleições de 2014. Esse apoio financeiro ajudou a reeleger a presidenta Dilma. três governadores. três senadores, 29 deputados federais e 29 deputados estaduais. Como diz Scheffer, o apoio financeiro dos planos não é inocente: “Eles cobram a fatura, querem seus representantes na ANS”.
No final das contas, o Brasil fez uma opção pela universalidade na Constituição de 1988. “mas na prática o fundo público é destinado ao setor privado”. E é isso que alimenta as esperanças dos conglomerados estrangeiros que desejam investir no Brasil.
Fonte: Revista Brasileiros