Uma ponte de safena
Publicado em 11/05/2016 • Notícias • Português
É sabido por todos que a indústria brasileira está enfrentando um quadro de enfermidades de gravidade poucas vezes vista em sua história. Os números da Pesquisa Industrial Mensal do IBGE, divulgados há um par de dias, embora mostrem um crescimento de 1,4% de março sobre fevereiro na série livre dos efeitos sazonais, apontam para um tombo de 11,7% em relação a igual mês do ano passado, acumulando um recuo de 9,7% nos últimos doze meses e de quase 20% nos últimos dois anos. Mesmo diante do fato de que a produção no segmento de bens de capital tenha aumentado pelo terceiro mês consecutivo, sugerindo que a indústria possa ter, enfim, tocado o fundo do poço, não resta qualquer dúvida de que o poço é fundo. O quantum hoje produzido pela indústria simplesmente retrocedeu a valores semelhantes aos do início da década passada.
Mas o que esperar em prazo maior? A resposta não é fácil porque requer decifrar um intrincado enigma: quais as razões que explicam o aprisionamento da indústria brasileira em uma trajetória de especialização regressiva que já dura mais de 30 anos, independentemente dos diferentes regimes competitivos adotados pelo país no período. Quer dizer, a especialização regressiva, que já era a tônica do movimento da indústria na fase de estagnação dos anos 1980, prosseguiu tanto no regime competitivo “orientado para fora” dos anos 1990 quanto no “orientado para dentro” dos anos 2000.
Especialização regressiva é a trajetória industrial na qual os setores intensivos em recursos naturais evoluem positivamente, em detrimento dos setores baseados em estratégias competitivas mais complexas, que envolvem maiores níveis de investimento fora do chão de fábrica, em atividades de esforço de venda, diferenciação de produtos e inovação. Por serem os primeiros menos dinâmicos na geração de renda e emprego e mais sujeitos aos ciclos de preços e quantidades do comércio internacional, são menos indutores de dinamismo econômico, constituindo uma das principais razões estruturais para o baixo crescimento de longo prazo da economia brasileira.
Para avançar na compreensão da questão, é importante ter claro que regimes competitivos não operam sozinhos. Seu alcance depende de condições iniciais e do contexto macro-institucional em que são adotados, sendo, portanto, inúmeros os fatores intervenientes. Ficam registradas aqui quatro deles em meio a outros tantos que podem ser adicionados à análise no caso brasileiro. Primeiro, a macroeconomia da estabilização adotada pelo país em todo o período, baseada no trinômio juros altos-câmbio baixo-aperto fiscal, manteve-se sempre hostil ao desenvolvimento industrial.
Segundo, as anomalias persistentemente presentes na estrutura de tarifas efetivas que, em importantes cadeias produtivas, protegem mais os insumos básicos do que os bens mais elaborados, desestimula a transformação industrial no país. Terceiro, a permanência de restrições sistêmicas à competitividade, especialmente as decorrentes das distorções da incidência tributária sobre as cadeias produtivas mais longas e dos custos crescentes de acesso a infraestruturas (energética, logística, urbana, educacional, inovação, etc.) desestimulam investimentos em atividades mais dependentes dessas externalidades. Quarto, a elevada participação de empresas transnacionais no tecido produtivo brasileiro aumenta a importância do comércio intrafirma, reduzindo, portanto, os efeitos dos incentivos criados pelo regime competitivo local.
Não é porque o regime competitivo orientado para dentro do período recente falhou que se deva justificar a reedição de um regime orientado para fora, que também fracassou a seu tempo. É preciso pensar fora da caixa e escapar desse movimento pendular. Tal como ocorreu nos anos 1990, uma liberalização comercial rápida em um ambiente macro-institucional instável e, ainda mais, na presença dos fatores acima mencionados, levará novamente a um surto de modernização com base no acesso a tecnologias incorporadas em bens de capital e insumos especializados importados que poderá ocasionar uma mudança de patamar mas não um impulso sustentado de crescimento da produtividade.
Reengenharias simplificadoras de produtos e processos, busca de flexibilidade de sourcing, operações de consolidação patrimonial dentre outras estratégias de sobrevivência minimizadoras de investimento terão lugar, contribuindo para aumentar ao invés de reduzir a rigidez estrutural da indústria. Nessas condições, a liberalização comercial tenderá a provocar mais um passo no processo de especialização regressiva.
Mal comparando, o retorno de um regime competitivo orientado para fora poderá restabelecer condições de sobrevivência das empresas industriais como uma ponte de safena pode ajudar a salvar a vida de um doente cardíaco. Mas dificilmente reconstituirá condições de saúde equivalentes a uma transformação que possibilite o aproveitamento de todo o potencial de desenvolvimento que ainda subsiste na estrutura industrial brasileira.
Fonte: Valor Econômico