Ideia de vouchers para educação e saúde esbarra em falta de exemplos
Publicado em 17/01/2019 • Notícias • Português
Um das propostas do ministro Paulo Guedes (Economia), a criação de vouchers para saúde e educação é vista com descrédito pelos especialistas por não haver evidência de benefícios aos usuários.
No caso da saúde, a iniciativa pode ainda estimular consultas e exames desnecessários e, assim como na educação, deixar o custo do sistema mais alto.
O voucher é uma espécie de vale que o Estado entrega aos cidadãos para que possam pagar, no setor privado, por serviços básicos. Dessa maneira, o Estado deixa de ter a estrutura pública de atendimento da área que usa esse voucher.
Paulo Guedes não deu detalhes nem de como nem de quando esse instrumento seria adotado no Brasil. Por meio de sua assessoria de imprensa, o Ministério da Saúde disse desconhecer a proposta.
A ideia de Guedes sobre o voucher da saúde se alinha com as de outros adeptos do liberalismo econômico, que defendem a desestatização de serviços públicos. No caso da saúde, poderia ocorrer a venda de hospitais e outros serviços do SUS, por exemplo.
A população pobre receberia um voucher (ou “bolsa-saúde”) para buscar um plano de saúde no setor privado. Na avaliação dos liberais, embora a Constituição diga que é dever do Estado oferecer saúde e educação, não determina que essas prestações sejam necessariamente diretas.
Poderiam ser prestadas indiretamente por meio de mecanismos de mercado. Para eles, a prestação de serviço pelo setor privado seria mais eficiente e mais barata dos que as oferecidas hoje pelo SUS.
Na saúde, os vouchers são usados majoritariamente por países que não têm sistemas organizados, como Bangladesh, Índia (Ásia), Moçambique, Nigéria, Senegal, Tanzânia, Uganda e Zambia (África) e Nicarágua (América Central), segundo revisão de artigos publicada no PubMed.
Nessa publicação, que avaliou 24 estudos de 16 programas de vouchers de saúde, a conclusão foi a de que esse instrumento aumenta a utilização dos serviços de saúde, mas não há evidência de que forneça cuidados de forma eficiente ou que tenham impacto nos resultados da saúde.
Para os especialistas, a proposta vai contra tudo o que o SUS sempre defendeu e que hoje os planos de saúde tentam adotar também: a atenção básica como porta de entrada do usuário no sistema e coordenadora dos cuidados em saúde. Além disso, segundo eles, os vouchers também aumentariam custos e não garantiriam resultados.
“Não é como é pegar uma bolsa família e ir ao supermercado comprar mantimentos. Se o cidadão não estiver orientado pela atenção básica, ele provavelmente terá um consumo ineficiente e ineficaz do serviço”, diz Walter Cintra, coordenador do curso de gestão de saúde na Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Acho um delírio, em nenhum lugar do mundo deu certo. É caro e ineficaz”, afirma Mario Scheffer, professor de medicina preventiva da USP.
O problema dos vouchers, segundo Walter Cintra, já começa com a assimetria de informações. “O que e quem o paciente vai buscar? Que tipo de orientação vai receber? Qual a cobertura? O risco é disso ser uma enganação para a população. Ter acesso aparente a serviços mesmo que isso não reflita em melhoria da sua condição de saúde.”
Para o médico Gustavo Gusso, um dos diretores da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), o voucher é uma perda de tempo e dinheiro. “É coisa de país subdesenvolvido. A gente já tem um SUS, com uma estrutura muito mais sofisticada do que a maioria dos países do nosso nível.”
Segundo ele, os economistas tendem a trazer para a saúde e educação experiências de outras áreas, como se elas fossem cadeias produtivas como outras quaisquer.
“A saúde exige uma rede estruturada, hierarquizada, com um caminho lógico. Não pode ser caótico assim. A pessoa sai de casa e vai direto para um cirurgião torácico, como quem vai comprar um sapato.”
Na opinião de Gusso, esse tipo de visão (que provavelmente é bem vista pela população em geral) tem a ver com a forma com que muitas pessoas utilizam os serviços privados de saúde no Brasil.
“Quando estão doentes, abrem o livrinho do plano de saúde e usam como se fosse um shopping center. Ninguém que é especialista em sistema de saúde defende mais isso. Só estimula consultas e exames desnecessários, não agrega valor ao paciente e aumenta muito os custos.”
EDUCAÇÃO
Na educação, 17 dos 50 estados norte-americanos e o Chile usam o sistema de vouchers. A ideia é que as famílias possam, financiadas pelo poder público, escolher a melhor escola para os filhos, seja pública ou privada.
A ideia foi lançada nos anos 1950 pelo prêmio Nobel de Economia Milton Friedman (1912-2006), que defendia que seria salutar a competição entre as instituições públicas e privadas pelos alunos.
Pesquisas acadêmicas até o momento não indicam esse ganho. Uma das maiores revisões científicas sobre o tema foi feita pelo economista Martin Carnoy, professor da Escola de Educação da Universidade Stanford.
Ao estudar os resultados em regiões como Nova York, Washington, Indiana e Milwaukee (estes dois últimos os maiores do país), ele não verificou notas maiores entre os beneficiários da política.
Entre alunos negros (em geral de baixa renda), os de Milwaukee tiveram em 2013 as piores notas entre 13 regiões norte-americanas, na avaliação nacional de aprendizagem (8ª série).
Uma explicação apresentada para esse baixo desempenho dos vouchers é que as escolas particulares que entram no programa são piores que as públicas. As de elite preferem manter seus estudantes tradicionais.
Carnoy questiona também o argumento de que os vouchers podem tornar o sistema menos custoso (a competição poderia trazer economia em relação ao sistema público, segundo os idealizadores).
O pesquisador aponta que há custos “escondidos” nos vouchers, como para gestão desse sistema e de financiamento de transporte escolar para o aluno que não estudará perto de casa. Ele estima que a política de vales pode encarecer o custo da rede em 25% ou mais.
Os defensores da política alegam que estudar numa escola privada pode ter outros benefícios além de uma eventual nota melhor, como estar num colégio com mais segurança.
O Chile é visto por esses defensores como exemplo exitoso do modelo. O país, que implementou o sistema nos anos 1980, é o melhor da América Latina no Pisa (avaliação internacional de estudantes).
Porém, um trabalho publicado em junho do ano passado por pesquisadores da Universidade da Califórnia (Berkley) e PUC (Santiago) criticou o sistema.
Ao analisar 56 estudos sobre a experiência chilena, eles constaram que os alunos pobres são prejudicados, pois as escolas conseguem escolher quais alunos querem atender. Assim, as melhores instituições priorizam os estudantes que já possuem melhores condições socioeconômicas, aumentando a desigualdade.
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Fonte: Folha de S.Paulo